São Paulo, segunda, 8 de setembro de 1997.



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MEMÓRIA
Georg Solti reinventou a sonoridade sinfônica

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Georg Solti não foi apenas um grande maestro. Ele era seguramente o último representante de uma geração nascida artisticamente no pós-Guerra, e que, herdando o rigor de um Bruno Walter (1876-1962), de um Arturo Toscanini (1867-1957) ou de um Wilhelm Furtwaengler (1886-1954), conseguiu reinventar a sonoridade da orquestra sinfônica.
Sua morte, na última sexta-feira, em Antibes (sul da França), interrompe uma carreira que ele mantinha, aos 84 anos, em constante ebulição.
Deveria reger amanhã, no Royal Albert Hall de Londres, um "Réquiem" de Verdi, compositor que frequentava com a mesma familiaridade de um Wagner, um Beethoven ou de um Richard Strauss.
Solti (pronuncia-se "Chólti") foi, antes de tudo, um maestro que não discriminava repertório, desde que a música fosse muitíssimo bem escrita e lhe deixasse a possibilidade de microdescobertas que acabavam por montar, no conjunto, uma leitura original.
Judeu, perseguido pelo nazismo, morreu como o grande intérprete atual de Richard Strauss (1864-1949), um dos comandantes das artes no Terceiro Reich.
De Strauss, já havia gravado uma antológica versão de "As Quatro Últimas Canções", com a soprano Lucia Popp. Recriou novamente a partitura ao interpretá-la com Kiri Te Kanawa. O "aprendizado" que ele deu a ela foi objeto, há alguns anos, de documentário da BBC.
"Sonoridade Solti"
A discografia registra uma "sonoridade Solti", da mesma forma que existiu uma "sonoridade Herbert von Karajan" (1908-1989) ou uma sonoridade Karl Boehm (1894-1981), dois outros grandes entre seus contemporâneos.
Na origem dessa sonoridade está talvez o curto período (1937) em que ele atuou como assistente de Toscanini no Festival de Salzburgo. Numa orquestra, nada abaixo da excelência é tolerável.
Ou ainda: metais, madeiras e cordas devem ter entre si o mesmo brilho e afinidade sonora, pouco importa a relevância de seus naipes e a duração com que eles transportam a melodia em determinados trechos da partitura.
Nos anos 50, Solti tinha a reputação de maestro enfezado. Comprou briga com a orquestra do Covent Garden ao assumir a direção do teatro londrino em 1961. Impôs aos músicos uma disciplina que gerou resistências e demissões.
Ele, que vinha de óperas alemãs -foi pelas mãos das autoridades militares americanas que, valorizado por ser judeu, regeu pela primeira vez em Munique, em 1946-, possuía uma visão muito rígida de como exercer seu comando.
Não precisou repetir a mesma receita na Sinfônica de Chicago (1969-1991). Contrariamente ao que se afirma, a orquestra não cresceu em suas mãos. Solti a herdou de Kubelick, Fritz Reiner e Martinon, todos eles grandes regentes.
Mas foi esta sua grande oportunidade de fazer a leitura de partituras não destinadas ao teatro lírico. Começa uma sucessão maravilhosa de sinfonias de Beethoven, Mahler, Brahms e Bruckner, que têm como característica comum serem belos e difíceis.
O consumidor norte-americano soube valorizar uma forma de interpretação que os menos entendidos consideravam rápida e agradável, e na qual os mais entendidos enxergavam uma grande coerência interna.
Jatinho
Solti se tornou um best seller. De homem rico, tornou-se milionário. Tinha mansões na Suíça e na Inglaterra. Comprou jatinho particular. Só Karajan tinha o seu.
Georg Solti foi ainda o maestro que emergiu no ramo clássico do showbiz num período de rápidos avanços técnicos: o LP, a alta fidelidade, o som estéreo e o CD.
Não era, como Karajan, uma mistura de regente e sonoplasta. Mas soube criar, nas gravações, efeitos de movimento dos personagens entre os dois canais da estereofonia que simulava o movimento das vozes dentro do palco.
A partir de "As Valquírias", segundo momento dos quatro que compõe a "Tetralogia" de Richard Wagner, essa espécie de efeito especial se junta a outros planos de excelência de interpretação.
Para os wagnerianos, Solti -passados quase 50 anos das primeiras sessões de gravação de "O Ouro do Reno"- ainda é o regente da versão de referência. Pouco importa os diferenciais que uma outra versão, a de Pierre Boulez, trouxe em 1975.



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