São Paulo, segunda, 8 de setembro de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A princesa morreu, viva a princesa

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Dizem que a celebridade é vivida em etapas muito semelhantes às de um paciente de Aids: revolta, negação e, finalmente, habilidade em negociar com a sorte.
Diana soube negociar com habilidade muitas vezes. Numa estação de esqui, colocou a mão diante da câmera e disse que estava protegendo seus filhos. Funcionou.
Num outro momento, usou de astúcia juvenil para escapar dos fotógrafos: ia à ginástica sempre com o mesmo modelo e a mesma cor de roupa, de forma que as fotos de hoje ficassem parecidas com as de ontem, acabando com a febre de novidades dos paparazzi.
Nem sempre é possível manter esse difícil exercício cotidiano. É um terreno minado, onde, a qualquer instante, podem explodir os flashes. Em qualquer esquina, pode-se cair na emboscada dos tablóides.
Ironicamente, Diana morreu na França, onde existe uma lei de proteção à privacidade mais elaborada do que em outros países. Embora trabalhe no assunto, prevendo o dia em que o Brasil queira debater a privacidade, reconheço que uma simples lei não resolve o problema.
Para começar, é preciso ver a questão da privacidade sem transformar os paparazzi em bodes expiatórios da era do espetáculo. Celebridades e políticos precisam da mídia, planejam astuciosamente atraí-la para seus eventos e acabam contribuindo para uma atmosfera em que os fatos só se tornam políticos se forem mediatizados.
Governos, empresas e instituições financeiras ameaçam mais a privacidade do que os ruidosos bandos de fotógrafos. Isto porque operam na surdina, buscando e recolhendo informações sobre a vida das pessoas, sob o argumento de que é interesse do Estado ou mesmo pré-condição para que se façam empréstimos e outras transações.
De repente, você está em casa e recebe um cartão cumprimentando-o por seu aniversário. O remetente é uma empresa com a qual nunca teve relações. Como explicar isso, a não ser pelo comércio de malas diretas que existe em quase todos os países, com gente vendendo endereços e outras informações pessoais sobre possíveis clientes?
O "farasiaísmo" da grande imprensa que esnoba os tablóides, ao mesmo tempo que publica suas fotos, é apenas a ponta do iceberg. A morte de Diana, os preparativos do enterro, as declarações políticas, os roteiros turísticos, os cálculos sobre aumento de vendas, as tentativas de avanço republicano, as manobras defensivas da monarquia inglesa, tudo isso mostra que, no fundo, são todos paparazzi, querendo levar sua foto para garantir o leite das crianças.
Não há paz na vida nem na morte dos "famapositivos". Cético sobre saídas imediatas para o problema, constato que os mais felizes são os que souberam negociar a cada momento, como se fossem prisioneiros regateando horas de banho de sol, visitas íntimas e outras necessidades humanas essenciais.
A tentativa do motorista de Diana de fugir da perseguição de motoqueiros busca no fundo voltar ao estágio da negação, da liberdade do anonimato, desejo de quase todos os amantes. E estava, de uma certa forma, condenada ao fracasso, não só porque os motoqueiros são muito velozes. A tensão da fuga é tão incômoda como o assédio das câmeras, quando a celebridade pára, cede e compra seu direito de prosseguir em paz.
Os paparazzi colheram a última foto de Diana. Agora uma multidão de paparazzi espera por eles para fotografá-los também. Eles acabam de entrar numa longa cadeia alimentar, serão pulverizados e transformados em novos produtos, exatamente como Diana o era em vida e continuou sendo depois de morta.
Não há inocentes nessa história, exceto as crianças, amigos e familiares das celebridades lançados de surpresa na cadeia. Tudo o que fazemos, inclusive este artigo, corre o risco de ser lançado nela. Na década de 70, alguns teóricos se dedicaram ao estudo do "star-system". Outros, como Jacques Ellul, ao papel da mídia na definição da agenda política.
Discutiu-se muito mas, na verdade, o processo passou a ser visto como algo que está aí, uma espécie de segunda natureza. Quem sabe agora a superação do episódio possa relançar o debate e melhorar um pouco não apenas a vida das celebridades, mas também dos anônimos expectadores que experimentam, vicariamente, suas aventuras?
Por enquanto, a tendência principal pode ser resumida assim: a princesa morreu, viva a princesa. As câmeras estão inquietas em busca da sucessora.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.