São Paulo, terça-feira, 08 de outubro de 2002

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"PESCANDO MULHERES"/"OS AMANTES SUICIDAS DE SONEZAKI"

Dois bonecos em uma noite quente

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Sutileza , engenhosidade, apuro técnico, delicadeza, expressividade, sincronia total: tudo verdade, mas nada dá conta desse incrível mundo de bonecos tornados mais vivos do que nós pelas artes do bunraku.
Que privilégio insólito assistir, assim, numa sexta-feira qualquer, o teatro tradicional japonês em pleno Cultura Artística, em São Paulo. Um espetáculo basta para alargar nossa idéia do que pode ser a arte do teatro -quer dizer, nossa idéia da vida.
A noite se iniciou com uma peça leve, "Pescando Mulheres" (1936). Para uma platéia de ocidentais, essa encenação, um aperitivo bem-humorado antes da monumental tragédia em três atos na segunda parte, tem papel fundamental, para que se possa ir entendendo aos poucos o que é o bunraku.
Desde logo, impressiona a expressividade e a movimentação dos bonecos articulados, que têm cerca de 1 metro de altura.
Cada um é movido por três titereiros, visíveis em cena. O principal deles, numa peça moderna como essa, aparece com o rosto descoberto; os outros, cobertos de preto da cabeça aos pés. Cobertos ou não, sua expressão jamais se manifesta. Toda a energia humana é transferida ao boneco.
Mas a cena é composta também por outros elementos:
1) o narrador, que fala pelos personagens e descreve as ações e emoções transitando entre o canto e a fala. Sua habilidade é impressionante, a voz modulada em mil tons. Ele é acompanhado por 2) um instrumentista de shamisen (alaúde japonês de três cordas, tocadas com um plectro).
Narrador e músico se unem organicamente com os marionetes. O paradoxo de uma vida que se anima, aos nossos olhos, em bonecos tão explicitamente artificiais, movidos de fora e com uma voz não menos explicitamente deslocada, é um tema rico o bastante para pensar o resto da vida.

Romeu e Julieta
E isso foi pouco, comparado ao resto da noite: "Os Amantes Suicidas de Sonezaki", de Chikamatsu Monzaemon (1653-1714). O casal desventurado, Tokube (vendedor de shoyu) e Ohatsu (prostituta), que vai sofrendo as previsíveis torções de um destino anunciado, é habitual e justificadamente comparado ao Romeu e Julieta de Shakespeare (habitual e justificadamente citado quando se fala em Monzaemon).
Estranho pensar que dois meros bonecos possam habitar a imaginação como emblemas de uma existência sofridamente humana. O rigor da encenação, onde nada -nem o menor gesto da mão, nem uma sílaba da fala- é deixado ao acaso, onde tudo, pelo contrário, é meticulosamente controlado, só redobra o espanto perante essa "vida" tão viva, que implicitamente desloca as aspas para fora do palco também.
O bunraku tem a força das artes essenciais: como se uma compreensão definitiva do humano fosse possível. E essa compreensão "é" o teatro, quando o teatro chega a ser o que pode ser. Dois bonecos numa noite quente, e mil e tantos bonecos animados, depois, por eles, vagando sonhadoramente nesse estranho sonho de cidade japonesa do Brasil.

Pescando Mulheres e Os Amantes Suicidas de Sonezaki


    

Com: Associação Bunraku de Osaka
Onde: Teatro Municipal do Rio de Janeiro (pça. Marechal Floriano, s/nš, tel. 0/xx/21/2262-3935)
Quando: hoje, às 20h30 (apresentação única na cidade)
Quanto: de R$ 20 a R$ 50 (legendas eletrônicas em português)



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