|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"PESCANDO MULHERES"/"OS AMANTES SUICIDAS DE SONEZAKI"
Dois bonecos em uma noite quente
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Sutileza , engenhosidade,
apuro técnico, delicadeza, expressividade, sincronia total: tudo
verdade, mas nada dá conta desse
incrível mundo de bonecos tornados mais vivos do que nós pelas
artes do bunraku.
Que privilégio insólito assistir,
assim, numa sexta-feira qualquer,
o teatro tradicional japonês em
pleno Cultura Artística, em São
Paulo. Um espetáculo basta para
alargar nossa idéia do que pode
ser a arte do teatro -quer dizer,
nossa idéia da vida.
A noite se iniciou com uma peça
leve, "Pescando Mulheres"
(1936). Para uma platéia de ocidentais, essa encenação, um aperitivo bem-humorado antes da
monumental tragédia em três
atos na segunda parte, tem papel
fundamental, para que se possa ir
entendendo aos poucos o que é o
bunraku.
Desde logo, impressiona a expressividade e a movimentação
dos bonecos articulados, que têm
cerca de 1 metro de altura.
Cada um é movido por três titereiros, visíveis em cena. O principal deles, numa peça moderna como essa, aparece com o rosto descoberto; os outros, cobertos de
preto da cabeça aos pés. Cobertos
ou não, sua expressão jamais se
manifesta. Toda a energia humana é transferida ao boneco.
Mas a cena é composta também
por outros elementos:
1) o narrador, que fala pelos personagens e descreve as ações e
emoções transitando entre o canto e a fala. Sua habilidade é impressionante, a voz modulada em
mil tons. Ele é acompanhado por
2) um instrumentista de shamisen (alaúde japonês de três cordas, tocadas com um plectro).
Narrador e músico se unem organicamente com os marionetes.
O paradoxo de uma vida que se
anima, aos nossos olhos, em bonecos tão explicitamente artificiais, movidos de fora e com uma
voz não menos explicitamente
deslocada, é um tema rico o bastante para pensar o resto da vida.
Romeu e Julieta
E isso foi pouco, comparado ao
resto da noite: "Os Amantes Suicidas de Sonezaki", de Chikamatsu
Monzaemon (1653-1714). O casal
desventurado, Tokube (vendedor
de shoyu) e Ohatsu (prostituta),
que vai sofrendo as previsíveis
torções de um destino anunciado,
é habitual e justificadamente
comparado ao Romeu e Julieta de
Shakespeare (habitual e justificadamente citado quando se fala em
Monzaemon).
Estranho pensar que dois meros
bonecos possam habitar a imaginação como emblemas de uma
existência sofridamente humana.
O rigor da encenação, onde nada
-nem o menor gesto da mão,
nem uma sílaba da fala- é deixado ao acaso, onde tudo, pelo contrário, é meticulosamente controlado, só redobra o espanto perante essa "vida" tão viva, que implicitamente desloca as aspas para
fora do palco também.
O bunraku tem a força das artes
essenciais: como se uma compreensão definitiva do humano
fosse possível. E essa compreensão "é" o teatro, quando o teatro
chega a ser o que pode ser. Dois
bonecos numa noite quente, e mil
e tantos bonecos animados, depois, por eles, vagando sonhadoramente nesse estranho sonho de
cidade japonesa do Brasil.
Pescando Mulheres e Os Amantes Suicidas de Sonezaki
Com: Associação Bunraku de Osaka
Onde: Teatro Municipal do Rio de
Janeiro (pça. Marechal Floriano, s/nš, tel.
0/xx/21/2262-3935)
Quando: hoje, às 20h30 (apresentação
única na cidade)
Quanto: de R$ 20 a R$ 50 (legendas
eletrônicas em português)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Música: CD traz o último show de Max no Sepultura Índice
|