São Paulo, sábado, 08 de outubro de 2005

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RASTROS DE ÓDIO

Para a autora Ruth Klüger, essência dos assassinatos em massa de judeus segue sem explicação

"Sentido do Holocausto não foi dito"

Michael Keena/Associated Press
"Os Calçados das Vítimas", de Michael Keena, que retrata massacre em campo de concentração no nazismo


DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista de Ruth Klüger (JFu).
 

Folha - No livro, você diz que os alemães são mestres em superação. O povo judeu tem sido mais incapaz de superar o trauma?
Klüger -
Os judeus são os mestres da recordação. Um judeu, inclusive, criou toda uma ciência relacionada a ela: a psicanálise. E toda a religião judaica, história e feriados, se baseiam na memória. É assim que lidam com os traumas.

Folha - Existe uma tendência a idealizar as vítimas do Holocausto?
Klüger -
Há sem dúvida uma tendência a idealizá-las, mas não se pode esquecer que elas também são silenciadas. As pessoas as tratam como aos doentes. Admiram suas lutas, mas não querem ter nada a ver com eles. Há uma conexão entre repugnância e admiração. As vítimas do Holocausto são idealizadas, sim, mas só nas últimas décadas. Antes elas eram marginalizadas ou coagidas a não falar sobre suas experiências.

Folha - Muito já se falou sobre o tema. O que resta para ser dito?
Klüger -
O ponto fulcral do problema. O anti-semitismo estava espalhado por toda a Europa, mas jamais tinha alcançado a dimensão do assassinato em massa. Chegou a isso em uma das mais cultas e civilizadas nações que já existiram. Fala-se da pobreza, do desemprego, mas tudo isso existia e existe em outros países, mais intensamente, sem conseqüências nem remotamente semelhantes. Como a propaganda nazista foi capaz de fazer com que todos aqueles jovens esclarecidos não tivessem qualquer pudor em matar seus concidadãos? Falta dizer a essência. Enquanto isso não for compreendido, como saberemos se os jovens que temos criado não fariam a mesma coisa? É olhar para o exemplo alemão e temer.

Folha - Utilizá-lo como exemplo funciona?
Klüger -
Não sei se o que o mundo aprendeu com a história é o que deveria ter aprendido. Alguns métodos nazistas foram utilizados na Bósnia e em outros lugares. Neste momento, preocupa a possibilidade de existência de campos de concentração em Guantánamo, por exemplo.

Folha - Há uma supervalorização estética do Holocausto? No cinema, na literatura, há um excesso oportunista do tema?
Klüger -
É verdade que o tema já foi comercialmente explorado, sentimentalizado e inclusive aproveitado pela indústria pornográfica. Mas tudo isso é esperado e não significa que devamos parar de tematizá-lo. É claro que não é desejável um aproveitamento sórdido do Holocausto, mas não se pode banir ou tolher qualquer expressão sobre ele. Isso o transformaria em tabu, o que é muito nocivo. Temos, sim, que continuar tentando encontrar algum sentido para aquilo.

Folha - E quanto ao culto turístico dos campos de concentração?
Klüger -
Sim, a Alemanha está coalhada deles, campos de concentração preservados como memoriais. Se as crianças são forçadas a ir até lá, podem acabar guardando rancor ou se tornando indiferentes à história. Não é suficiente cultivar esses lugares de lembrança. É preciso integrá-los à vida e ao pensamento. É preciso ser crítico em relação à herança.

Folha - O que a levou a estudar e se especializar em filologia e literatura germânicas?
Klüger -
Essa é a minha herança. Os nazistas tomaram tudo o que podiam de mim. A língua é o que não puderam tomar.

Folha - O trabalho de luto em relação aos mortos do Holocausto está se concluindo em você?
Klüger -
Não sei. Sinto que vivo uma fase diferente. Às vezes, em Viena, de repente sinto uma fúria em relação aos que fizeram tudo aquilo. E sou capaz de simpatizar mais com a criança que fui. Olho para a vida normal que as crianças levam hoje e sinto raiva por não ter vivido nada disso. Um ressentimento extremo toma conta de mim e não paro de pensar na história. O luto pelo Holocausto continua. A única coisa que se foi é a impressão de que tenho de escrever sobre ele.


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