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RASTROS DE ÓDIO
Para a autora Ruth Klüger, essência dos assassinatos em massa de judeus segue sem explicação
"Sentido do Holocausto não foi dito"
Michael Keena/Associated Press
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"Os Calçados das Vítimas", de Michael Keena, que retrata massacre em campo de concentração no nazismo |
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir a continuação da entrevista de Ruth Klüger
(JFu).
Folha - No livro, você diz que os
alemães são mestres em superação. O povo judeu tem sido mais incapaz de superar o trauma?
Klüger - Os judeus são os mestres da recordação. Um judeu, inclusive, criou toda uma ciência relacionada a ela: a psicanálise. E toda a religião judaica, história e feriados, se baseiam na memória. É
assim que lidam com os traumas.
Folha - Existe uma tendência a
idealizar as vítimas do Holocausto?
Klüger - Há sem dúvida uma
tendência a idealizá-las, mas não
se pode esquecer que elas também são silenciadas. As pessoas as
tratam como aos doentes. Admiram suas lutas, mas não querem
ter nada a ver com eles. Há uma
conexão entre repugnância e admiração. As vítimas do Holocausto são idealizadas, sim, mas só nas
últimas décadas. Antes elas eram
marginalizadas ou coagidas a não
falar sobre suas experiências.
Folha - Muito já se falou sobre o
tema. O que resta para ser dito?
Klüger - O ponto fulcral do problema. O anti-semitismo estava
espalhado por toda a Europa, mas
jamais tinha alcançado a dimensão do assassinato em massa.
Chegou a isso em uma das mais
cultas e civilizadas nações que já
existiram. Fala-se da pobreza, do
desemprego, mas tudo isso existia
e existe em outros países, mais intensamente, sem conseqüências
nem remotamente semelhantes.
Como a propaganda nazista foi
capaz de fazer com que todos
aqueles jovens esclarecidos não tivessem qualquer pudor em matar
seus concidadãos? Falta dizer a essência. Enquanto isso não for
compreendido, como saberemos
se os jovens que temos criado não
fariam a mesma coisa? É olhar para o exemplo alemão e temer.
Folha - Utilizá-lo como exemplo
funciona?
Klüger - Não sei se o que o mundo aprendeu com a história é o
que deveria ter aprendido. Alguns
métodos nazistas foram utilizados na Bósnia e em outros lugares. Neste momento, preocupa a
possibilidade de existência de
campos de concentração em
Guantánamo, por exemplo.
Folha - Há uma supervalorização
estética do Holocausto? No cinema,
na literatura, há um excesso oportunista do tema?
Klüger - É verdade que o tema já
foi comercialmente explorado,
sentimentalizado e inclusive
aproveitado pela indústria pornográfica. Mas tudo isso é esperado
e não significa que devamos parar
de tematizá-lo. É claro que não é
desejável um aproveitamento
sórdido do Holocausto, mas não
se pode banir ou tolher qualquer
expressão sobre ele. Isso o transformaria em tabu, o que é muito
nocivo. Temos, sim, que continuar tentando encontrar algum
sentido para aquilo.
Folha - E quanto ao culto turístico
dos campos de concentração?
Klüger - Sim, a Alemanha está
coalhada deles, campos de concentração preservados como memoriais. Se as crianças são forçadas a ir até lá, podem acabar guardando rancor ou se tornando indiferentes à história. Não é suficiente cultivar esses lugares de
lembrança. É preciso integrá-los à
vida e ao pensamento. É preciso
ser crítico em relação à herança.
Folha - O que a levou a estudar e
se especializar em filologia e literatura germânicas?
Klüger - Essa é a minha herança.
Os nazistas tomaram tudo o que
podiam de mim. A língua é o que
não puderam tomar.
Folha - O trabalho de luto em relação aos mortos do Holocausto está se concluindo em você?
Klüger - Não sei. Sinto que vivo
uma fase diferente. Às vezes, em
Viena, de repente sinto uma fúria
em relação aos que fizeram tudo
aquilo. E sou capaz de simpatizar
mais com a criança que fui. Olho
para a vida normal que as crianças levam hoje e sinto raiva por
não ter vivido nada disso. Um ressentimento extremo toma conta
de mim e não paro de pensar na
história. O luto pelo Holocausto
continua. A única coisa que se foi
é a impressão de que tenho de escrever sobre ele.
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