São Paulo, sábado, 08 de outubro de 2005

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RODAPÉ

No fio da navalha

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O poeta e crítico Eucanaã Ferraz acaba de organizar uma antologia de poemas que, a despeito dos méritos ou defeitos de suas opções, traz nas entrelinhas algumas questões agudas. Título e subtítulo expõem os critérios de seleção e o efeito almejado: "Veneno Antimonotonia: Os Melhores Poemas e Canções contra o Tédio".
E a própria escolha dos poetas está destinada a gerar alguma polêmica entre leitores com juízos mais restritivos, pois coloca no mesmo saco nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mario Quintana e João Cabral de Melo Neto e compositores como Noel Rosa, Caetano Veloso, Aldir Blanc, Cazuza e Adriana Calcanhoto.
Cruzamentos entre poetas do "alto modernismo" e autores da música popular não deveriam causar estranheza. Não apenas porque nosso repertório poético se constituiu justamente na pesquisa de um coloquialismo para o qual a canção serviu de fonte, mas também porque os próprios compositores conquistaram uma complexidade que não raro amplificou as pesquisas formais das vanguardas. Exemplo disso é a relação de complementaridade que ocorreu entre a poesia concreta dos anos 50 e o tropicalismo dos anos 60 (tema do livro "Poesia Concreta Brasileira", de Gonzalo Aguilar, que já tive a oportunidade de comentar aqui).
No caso de "Veneno Antimonotonia", o repertório do antologista passa ao largo dessa vertente mais experimental, mas o trânsito poesia-música está presente, de alguma forma, nos poemas de Waly Salomão e Antonio Cicero, que sempre cultivaram essa dupla identidade criativa.
A questão mais candente, portanto, é a intencionalidade da antologia. Não se trata aqui de purismo em relação aos inequívocos propósitos comerciais de um volume que reúne medalhões das esferas popular e erudita. O que importa é saber que tipo de recepção o antologista produz -na mesma medida que o curador de uma bienal de artes plásticas pode determinar o olhar do espectador. (E, diga-se entre parênteses, o termo "curadoria" vem sendo cada vez mais aplicado ao âmbito editorial e aos eventos literários.)
Assim, apesar de sua brevidade, as "Notas de um Antologista" que abrem o livro correspondem ao aspecto mais interessante para quem não aceita uma recepção "acrítica". Eucanaã Ferraz inicia dizendo que "todo poema é, por princípio, um veneno antimonotonia".
Ou seja, ao contrário da linguagem ordinária, cujo uso repetitivo e mecânico "torna-a enfadonha, rotineira", o poema "faz-se por deslocamentos da língua e acarreta no seu ponto ideal uma ruptura da monotonia em vários campos da realidade: política, subjetividade, comportamento, gosto, moral", lançando-nos numa "zona de prazer e surpresa". Dessa forma, as escolhas do organizador recaíram sobre aqueles poemas que podem restaurar "a alegria, a saúde, a sedução, o desejo, as intensidades" -enfim, "a vocação utópica da poesia".
Não é difícil ouvir aqui uma atualização do adágio horaciano segundo o qual a poesia deve "instruir e deleitar". Entretanto, não custa lembrar que as antigas preceptivas poéticas perderam validade há pelo menos três séculos. Os "topoi", os "lugares retóricos" que alimentavam a poética clássica equivalem hoje a clichês ou lugares comuns; e as finalidades didáticas só encontram espaço nos livros de auto-ajuda.
Eucanaã Ferraz está ciente disso e diz explicitamente que sua intenção é compor uma espécie de livro de auto-ajuda às avessas, fazendo "o verso descer ao chão dos signos mais domésticos". E, entre uma "escrita sombria, alimentada pelos incontornáveis males de nossa civilização", e uma arte que "desentranha alguma vocação para a luz", escolhe a segunda.
São opções conscientes de um antologista que caminha no fio da navalha. Tem a seu favor os poemas de autores como Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar e Francisco Alvim, mas corre o risco de, nesse "retorno do verso ao cotidiano", nessa conciliação com o mundo efetivo, transformar a poesia em arte culinária.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Veneno Antimonotonia
   
Organização: Eucanaã Ferraz
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 34,90 (232 págs.)


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