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RODAPÉ
No fio da navalha
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O poeta e crítico Eucanaã
Ferraz acaba de organizar
uma antologia de poemas que, a
despeito dos méritos ou defeitos
de suas opções, traz nas entrelinhas algumas questões agudas.
Título e subtítulo expõem os critérios de seleção e o efeito almejado: "Veneno Antimonotonia: Os
Melhores Poemas e Canções contra o Tédio".
E a própria escolha dos poetas
está destinada a gerar alguma polêmica entre leitores com juízos
mais restritivos, pois coloca no
mesmo saco nomes como Carlos
Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira, Mario Quintana e João
Cabral de Melo Neto e compositores como Noel Rosa, Caetano
Veloso, Aldir Blanc, Cazuza e
Adriana Calcanhoto.
Cruzamentos entre poetas do
"alto modernismo" e autores da
música popular não deveriam
causar estranheza. Não apenas
porque nosso repertório poético
se constituiu justamente na pesquisa de um coloquialismo para o
qual a canção serviu de fonte, mas
também porque os próprios compositores conquistaram uma
complexidade que não raro amplificou as pesquisas formais das
vanguardas. Exemplo disso é a relação de complementaridade que
ocorreu entre a poesia concreta
dos anos 50 e o tropicalismo dos
anos 60 (tema do livro "Poesia
Concreta Brasileira", de Gonzalo
Aguilar, que já tive a oportunidade de comentar aqui).
No caso de "Veneno Antimonotonia", o repertório do antologista
passa ao largo dessa vertente mais
experimental, mas o trânsito poesia-música está presente, de alguma forma, nos poemas de Waly
Salomão e Antonio Cicero, que
sempre cultivaram essa dupla
identidade criativa.
A questão mais candente, portanto, é a intencionalidade da antologia. Não se trata aqui de purismo em relação aos inequívocos
propósitos comerciais de um volume que reúne medalhões das
esferas popular e erudita. O que
importa é saber que tipo de recepção o antologista produz -na
mesma medida que o curador de
uma bienal de artes plásticas pode
determinar o olhar do espectador.
(E, diga-se entre parênteses, o termo "curadoria" vem sendo cada
vez mais aplicado ao âmbito editorial e aos eventos literários.)
Assim, apesar de sua brevidade,
as "Notas de um Antologista" que
abrem o livro correspondem ao
aspecto mais interessante para
quem não aceita uma recepção
"acrítica". Eucanaã Ferraz inicia
dizendo que "todo poema é, por
princípio, um veneno antimonotonia".
Ou seja, ao contrário da linguagem ordinária, cujo uso repetitivo
e mecânico "torna-a enfadonha,
rotineira", o poema "faz-se por
deslocamentos da língua e acarreta no seu ponto ideal uma ruptura
da monotonia em vários campos
da realidade: política, subjetividade, comportamento, gosto, moral", lançando-nos numa "zona
de prazer e surpresa". Dessa forma, as escolhas do organizador
recaíram sobre aqueles poemas
que podem restaurar "a alegria, a
saúde, a sedução, o desejo, as intensidades" -enfim, "a vocação
utópica da poesia".
Não é difícil ouvir aqui uma
atualização do adágio horaciano
segundo o qual a poesia deve "instruir e deleitar". Entretanto, não
custa lembrar que as antigas preceptivas poéticas perderam validade há pelo menos três séculos.
Os "topoi", os "lugares retóricos"
que alimentavam a poética clássica equivalem hoje a clichês ou lugares comuns; e as finalidades didáticas só encontram espaço nos
livros de auto-ajuda.
Eucanaã Ferraz está ciente disso
e diz explicitamente que sua intenção é compor uma espécie de
livro de auto-ajuda às avessas, fazendo "o verso descer ao chão dos
signos mais domésticos". E, entre
uma "escrita sombria, alimentada
pelos incontornáveis males de
nossa civilização", e uma arte que
"desentranha alguma vocação para a luz", escolhe a segunda.
São opções conscientes de um
antologista que caminha no fio da
navalha. Tem a seu favor os poemas de autores como Vinicius de
Moraes, Ferreira Gullar e Francisco Alvim, mas corre o risco de,
nesse "retorno do verso ao cotidiano", nessa conciliação com o
mundo efetivo, transformar a
poesia em arte culinária.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Veneno Antimonotonia
Organização: Eucanaã Ferraz
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 34,90 (232 págs.)
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