|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
Viver ou morrer pelo São Francisco
Depois de sobrevoar a caatinga por algumas horas e
passar um dia em Cabrobó, o corpo pede água. Isso é pedagógico
porque nos aproxima fisicamente
de um problema estratégico do
nosso século.
O tema está entrando na agenda por muitos lados, como a seca
na Amazônia e a greve de fome
do bispo Luiz Flávio Cappio. Tanto o tsunami como a inundação
de Nova Orleans são expressões
aquosas de um processo de mudança climática, mostrando-nos
como o planeta depende de sua
enorme porção líqüida.
A transposição do rio São Francisco mexe com toda a minha vida política. Acrescida de um novo
componente, a greve de fome de
dom Luiz Flávio Cappio, ela me
pede respostas e me angustia porque as respostas não são fáceis.
Se entrasse hoje em greve de fome contra a transposição, estaria
cometendo um equívoco. Preciso
mais de conhecimento do que de
jejum. O tema demanda uma
abordagem mais ampla e um
tempo razoável de estudo, que a
crise política nos roubou.
Participei de três leis decisivas
nesse campo: uma criou um sistema nacional de recursos hídricos,
outra, a ANA (Agência Nacional
de Águas), e uma terceira, em que
fui relator, tratava da questão da
outorga e do estímulo à criação
dos Comitês de Bacia.
A idéia desta última é simples:
cobrar pela água e destinar o dinheiro à bacia, para que recupere
o rio. Quase todos os nossos rios
estão pedindo socorro.
Se tanto o governo como o bispo
nos dessem um pouco mais de
tempo, talvez pudéssemos realizar um grande debate nacional,
desta vez para além dos limites de
audiências públicas com técnicos
e militantes.
Na cadeia, tinha horror às propostas de greve de fome. Um tiro
me levou um pedaço do estômago
e tentava comer um pouco ao longo de cada dia.
Achava também que a greve de
fome era uma forma de protesto
político-religiosa, porque envolvia uma autoflagelação. Mais
tarde, na história da Índia, compreendi as greves de fome de Gandhi, pois elas eram feitas pela encarnação da independência.
Mas já não tinha a mesma simpatia pela sua idéia de se abster
de relações sexuais ainda com
saúde. Isso não significa que não
admire. Apenas a considero dentro de um quadro político-religioso, do qual me excluo, com minha
visão laica do processo.
Considero um equívoco pensar
que uma greve de fome pode tornar-se uma coisa comum, que se
use diante de qualquer nova
obra. Se isso acontecesse, a greve
de fome simplesmente desapareceria como forma de luta, tornando-se banal e desinteressante.
O sacrifício do bispo colocou o
tema da transposição na agenda,
rompendo o bloqueio da crise política. O governo deveria aproveitar a oportunidade e ampliar o
debate para além dos círculos especializados.
Observei entre os padres e romeiros uma grande simpatia por
Lula. Um dos padres ao microfone, ouvindo um grito oposicionista, advertiu que o único grito autêntico ali era pelo rio São Francisco.
O governo está diante de um
grupo que o apoiou e não rompeu
com ele. Um grupo que enfatiza a
revitalização e quer garantir que
os projetos se destinem àqueles
que mais precisam da água.
Esse problema, de levar o mínimo de água necessário para uma
existência digna ao semi-árido, é
um dos mais gigantescos desafios
à nossa geração. Estamos de acordo quanto aos objetivos, mas divergimos quanto ao caminho.
Quanto mais de acordo estivermos, menos penosa será a tarefa.
Simples. O problema, no entanto,
é colocar a simplicidade em marcha.
O primeiro passo é dar razões
ao bispo para que se convença de
que vale mais viver pelo rio São
Francisco do que morrer por ele.
Diante dele, como diante de Gandhi, meus argumentos partem da
esfera rasa onde se não acredita
em vida depois da morte.
Um dia, em Cabrobó, senti ao
mesmo tempo saudade de água e
percebi o que significa o São
Francisco para aquelas pessoas.
Acho admirável como não ficaram alucinadas naquele clima.
Essas pessoas merecem saber direito o que acontecerá com seu rio
porque, na verdade, é o que vai
acontecer com suas vidas.
O proveito imediato que se pode
tirar dessa greve de fome é a consciência de que a idéia de debate
sobre o destino de um rio deve
transcender os círculos estreitos.
Nunca tivemos tão grande oportunidade de buscar consenso em
dois temas que entram na agenda: o semi-árido e a revitalização
do São Francisco.
Isso é uma novidade, pois a degradação dos rios brasileiros é um
dado do cotidiano que jogamos
num canto da memória, sobretudo quando não sentimos o cheiro.
@ - contato@gabeira.com.br
Texto Anterior: Cinema: Santoro terá papel em filme de Miller, diz revista Próximo Texto: Teatro: "Honestamente" faz mutirão artístico no centro de SP Índice
|