São Paulo, quarta, 8 de outubro de 1997.




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O SORVETE TEM HISTÓRIA
Da raspadinha ao sundae, uma paixão de quase todos

NINA HORTA
especial para a Folha

Em 1780, o rei Ferdinando 6º, a rainha e sua corte, em viagem, pararam depois do jantar para descanso, no convento napolitano de São Gregório Armeno, famoso pela boa comida.
O grupo foi levado para uma grande sala com mesa de frios variados posta no centro. Carnes, presuntos, aves, peixes, queijos e frutas. Estranharam.
Seria impossível comer uma refeição daquelas depois do jantar. A abadessa tanto insistiu que, constrangidos, sentaram-se, cada um com uma freira atrás para oficiar a comilança.
A rainha escolheu uma fatia de peru que ao ser trinchado revelou-se, nada mais nada menos, que um sorvete de limão. E assim por diante. Todo o jantar, das alcachofras ao lombo de porco, era "fake".
Piada
Risadas gerais, alívio da comitiva. Coisas de freirinhas napolitanas, loucas por um sorvete. Suas receitas começavam assim: "Deixem ferver o leite pelo tempo de uma 'Ave-Maria'."
Essa história está no livro póstumo de Elizabeth David, "Harvest of the Cold Months. The Social History of Ice and Ices" (Michael Joseph, 1994).
Não é um livro delicioso como os outros que escreveu, talvez inacabado. Ficou uma pesquisa detalhada e erudita, mas sem sua graça e leveza costumeiras.
O pior é que desmente tudo o que a antiga musa canta. Cai por terra o que sabíamos sobre sorvete, de Catarina de Médicis ao café Procópio.
Gelados
No lugar, aparecem ilustres desconhecidos a inventar máquinas de sal e gelo, as datas buleversadas, um caos. Há que começar a estudar os gelados outra vez.
Mas sempre sobraram o picolé e a raspadinha, indatáveis. Começaram a existir com a neve.
Era só misturar uma fragrância, uma fruta e sair por lá, num antigo calçadão da Pérsia, Egito, China e Índia, derrubando com a língua, devagar, um sorvete de cardamomo, iogurte e outro em pó.
É claro que o gelo sempre deslumbrou o mundo. Como não deslumbraria? Inventamos poços fundos para guardar a neve, fôrmas de todos os feitios para prender o gelo.
O cisne de navio italiano e de hotel americano é quase tão velho quanto as pirâmides, ou pelo menos mais velho que a Estátua da Liberdade.
Assim mesmo, depois de inventado o sorbet, custamos a descobrir o sorvete cremoso como o de hoje. Demorou.
Meio caminho
Misturavam açúcar demais, e ele não endurecia. Ficava "tra gelato e non gelato", meio caminho entre o sólido e o líquido.
Um pouco mais mole, cremoso, granita, parfait, espuma, cassata, sundae, tornou-se a paixão de quase todos, o fruto de uma transformação mágica. Estamos com ele per saecula saeculorum e não abrimos.



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