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O SORVETE TEM HISTÓRIA
Da raspadinha ao sundae, uma paixão de quase todos
NINA HORTA
especial para a Folha
Em 1780, o rei Ferdinando 6º, a
rainha e sua corte, em viagem, pararam depois do jantar para descanso, no convento napolitano de
São Gregório Armeno, famoso pela boa comida.
O grupo foi levado para uma
grande sala com mesa de frios variados posta no centro. Carnes,
presuntos, aves, peixes, queijos e
frutas. Estranharam.
Seria impossível comer uma refeição daquelas depois do jantar. A
abadessa tanto insistiu que, constrangidos, sentaram-se, cada um
com uma freira atrás para oficiar a
comilança.
A rainha escolheu uma fatia de
peru que ao ser trinchado revelou-se, nada mais nada menos,
que um sorvete de limão. E assim
por diante. Todo o jantar, das alcachofras ao lombo de porco, era
"fake".
Piada
Risadas gerais, alívio da comitiva. Coisas de freirinhas napolitanas, loucas por um sorvete. Suas
receitas começavam assim: "Deixem ferver o leite pelo tempo de
uma 'Ave-Maria'."
Essa história está no livro póstumo de Elizabeth David, "Harvest
of the Cold Months. The Social
History of Ice and Ices" (Michael
Joseph, 1994).
Não é um livro delicioso como os
outros que escreveu, talvez inacabado. Ficou uma pesquisa detalhada e erudita, mas sem sua graça e
leveza costumeiras.
O pior é que desmente tudo o
que a antiga musa canta. Cai por
terra o que sabíamos sobre sorvete, de Catarina de Médicis ao café
Procópio.
Gelados
No lugar, aparecem ilustres desconhecidos a inventar máquinas
de sal e gelo, as datas buleversadas,
um caos. Há que começar a estudar os gelados outra vez.
Mas sempre sobraram o picolé e
a raspadinha, indatáveis. Começaram a existir com a neve.
Era só misturar uma fragrância,
uma fruta e sair por lá, num antigo
calçadão da Pérsia, Egito, China e
Índia, derrubando com a língua,
devagar, um sorvete de cardamomo, iogurte e outro em pó.
É claro que o gelo sempre deslumbrou o mundo. Como não deslumbraria? Inventamos poços
fundos para guardar a neve, fôrmas de todos os feitios para prender o gelo.
O cisne de navio italiano e de hotel americano é quase tão velho
quanto as pirâmides, ou pelo menos mais velho que a Estátua da Liberdade.
Assim mesmo, depois de inventado o sorbet, custamos a descobrir o sorvete cremoso como o de
hoje. Demorou.
Meio caminho
Misturavam açúcar demais, e ele
não endurecia. Ficava "tra gelato
e non gelato", meio caminho entre o sólido e o líquido.
Um pouco mais mole, cremoso,
granita, parfait, espuma, cassata,
sundae, tornou-se a paixão de
quase todos, o fruto de uma transformação mágica. Estamos com
ele per saecula saeculorum e não
abrimos.
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