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Obesos de informação, famintos de sentido
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
A força do sentimento varia,
mas raramente me livro dele. Vivo
com a sensação difusa de estar
perdendo algo. O dia não cabe no
dia. Quero fazer mais coisas do
que posso, quero saber mais do
que sei que sou capaz de assimilar.
O meu corpo-a-corpo contra a ansiedade do tempo e a dispersão da
atenção é uma verdadeira batalha
sem trégua.
Fala-se muito na sobrecarga de
informação a que estamos submetidos. É verdade. A revolução tecnológica em curso multiplica de
modo vertiginoso as possibilidades de comunicação e acesso a todo tipo de informação. Uma fibra
ótica da espessura de um fio de cabelo comporta o equivalente a 500
canais de TV simultâneos. O corpus platônico vai todo num CD.
Vivemos sob um bombardeio
cerrado de estímulos, cercados de
sons, rótulos, slogans e imagens
por todos os lados. Surfamos pelas
telas e virtualidades do dia como
que situados por um pelotão de
mensagens e apelos desconexos
clamando por estilhaços de nossa
atenção.
Tudo isso, não nego, é parte da
realidade. Mas, quando observo à
minha volta e reflito com mais
cuidado sobre o que se passa comigo, concluo que é apenas um dos
lados -o mais óbvio- da questão.
É sem dúvida confortável alimentar a crença de que somos vítimas passivas do sequestro e invasão forçada de nossas mentes
por forças externas. De que a sobrecarga de informação que nos
aflige é uma avalanche sob a qual
vivemos, a contragosto, soterrados.
Que esse seja o aspecto mais saliente e imediato de nossa experiência na era da informação, não
duvido. O que é preciso considerar, contudo, é que somos em larga medida cúmplices do problema
que enfrentamos.
Ao banquete pantagruélico de
mensagens e informações que nos
é oferecido e empurrado a cada
instante, corresponde a nossa não
menos formidável gula faustiana.
Nada, ao que parece, sacia. À multiplicação dos meios e estímulos
que nos acossam, corresponde a
nossa espantosa insaciabilidade e
a incontinência do nosso desejo
por mais.
O assédio, é certo, existe. Mas, se
ele vinga, é porque encontra terreno fértil no apetite que nos devora.
A tortura que nos oprime e que
nos torna alheios a nós mesmos
não vem de fora, mas tem raízes
na nossa incapacidade interna de
lidar com o mundo que estamos
criando e que nos escapa e amedronta como um ser hostil. A vítima é o algoz.
O que está acontecendo? O modelo que me ocorre sempre que
penso no problema da atenção estilhaçada e da sobrecarga de informação baseia-se numa analogia com o funcionamento do nosso
aparelho perceptivo.
Os órgãos sensoriais que nos ligam ao mundo são extremamente
seletivos naquilo que registram e
transmitem ao cérebro. O olho humano, por exemplo, não é capaz
de captar todo o espectro de energia eletromagnética existente
-tudo o que seria em tese passível
de ser visto-, mas apenas uma
pequena faixa intermediária chamada "espectro visível".
O restante do espectro (cerca de
98% do total) não chega a ser registrado pelo olho, na medida em
que se revelou de pouca relevância
para a nossa vida prática no processo evolutivo. É por isso que os
raios ultravioleta, por exemplo,
estão fora do "espectro visível" humano, mas são captados pelo aparelho visual das abelhas, para cuja
sobrevivência são cruciais.
O mesmo se aplica aos demais
sentidos. O ouvido humano é capaz de detectar vibrações sonoras
entre 20 e 20.000 ciclos por segundo. Os sons que circulam fora desses limites, como as ondas hertzianas que animam os aparelhos de
rádio, escapam da teia do nosso
equipamento auditivo.
Suponha, porém, que uma súbita mutação genética reduza drasticamente a seletividade natural
dos nossos sentidos. O que aconteceria se, de repente, nós tivéssemos
que passar a lidar com toda uma
gama extra e uma carga torrencial
de percepções visuais e auditivas
com a qual não estamos habituados?
O ganho de sensibilidade seria
tangível. "Se as portas da percepção se desobstruíssem", sonhava o
poeta místico-romântico William
Blake, "tudo se revelaria ao homem tal qual é, infinito." O problema é saber se estaríamos em
condições de assimilar e usar devidamente o fantástico acréscimo de
informação sensível que isso acarretaria.
O ponto crucial é que existe uma
adequação profunda entre a constituição do nosso aparelho perceptivo, de um lado, e a nossa capacidade de processamento de impressões sensíveis, de outro.
O mais provável é que um súbito
salto qualitativo em nosso equipamento sensorial produzisse não a
revelação mística imaginada por
Blake, mas um terrível engarrafamento cerebral, gerando um estado de confusão e perplexidade do
qual apenas lentamente conseguiríamos nos recuperar.
É a brutal seletividade dos nossos sentidos que nos protege da infinita complexidade do universo.
A ordem que percebemos no mundo é essencialmente devida à pobreza de nossa experiência.
Imagine o que significaria, por
exemplo, passar a captar e ouvir
em nossas mentes todas as ondas
radiofônicas que cruzam inauditas o nosso caminho. Se a proteção
desaba, o caos mostra os dentes.
A impressão que tenho é que estamos vivendo algo parecido com
isso. O pano de fundo é o avanço
tecnológico que, como uma súbita
mutação, não só amplia a velocidade e o volume das informações
a que temos acesso, como também
parece despertar em nós uma voragem descomunal e insaciável
por elas.
O nervo do problema é que existe um descompasso essencial entre
esse apetite desgovernado por doses adicionais de informação, de
um lado, e a capacidade limitada
do nosso cérebro de assimilá-las,
digeri-las e integrá-las em um todo coerente e dotado de sentido,
de outro.
A resultante é o mal-estar da sobrecarga de informação e da dispersão da atenção: obesidade e fome.
O que fazer? O grande desafio,
creio, será reconhecer e aceitar os
limites da nossa capacidade interna de processamento e conseguir
domar a voragem quase compulsiva que com frequência nos leva a
agir com base na crença falsa de
que mais informação é sempre
melhor.
Há um "trade off" entre quantidade e qualidade, entre rapidez e
aprofundamento. O que nos falta
mesmo é o aprendizado e o autocontrole necessários para seguir
uma dieta informacional equilibrada. Abrir e explorar, mas também saber fechar de forma seletiva
e inteligente.
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