São Paulo, quarta-feira, 08 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO
Como ser feliz (mesmo não sabendo inglês)

Nunca tive a intenção de ver de novo "Titanic". Um só naufrágio me bastou; mas, como se sabe, houve quem assistisse mais de 20 vezes ao filme de James Cameron, talvez por inconformismo diante da tragédia. Era, sem dúvida, uma maneira de fazer Leonardo DiCaprio e Kate Winslet reviverem; só que, no final, eles morriam de novo, e então se impunha voltar ao cinema outra vez.
Acontece que está à venda nas bancas de jornal um vídeo do "Titanic", com as legendas em inglês. Junto vem um folheto com a tradução das expressões mais difíceis. Faz parte de uma coleção de vídeos publicada por "Speak Up" -a revista de quem quer melhorar o próprio inglês.
Durante um bom tempo comprei "Speak Up"; foi na época em que eu tinha toca-fitas no carro. A revista vinha com uma fita (agora há versão em CD). Passei horas no trânsito absorvendo entrevistas com Michael Douglas, Tom Wolfe ou o ator que fazia o mordomo Alfred nos seriados do Batman. Em casa, teoricamente, eu podia ler a revista, cheia de explicações sobre o que não dava para entender.
Acho até que me ajudou no inglês. "Speak Up" é uma coisa muito bem-feita. Só que, claro, desisti depois de algum tempo. O problema não está na revista, está em nós mesmos. O que compramos nas bancas não é exatamente uma dose quinzenal de conhecimento da língua; é a perspectiva de algum dia sabermos inglês perfeitamente.
É o que ocorre também com livros de auto-ajuda, dietas revolucionárias ou carteirinhas de sócio numa academia de ginástica: o que está à venda é a decisão de mudar, de melhorar, não a mudança ou a melhora em si.
Claro que só essa decisão já nos melhora um pouco. E todo regime -mesmo aqueles baseados só em frituras ou só em chocolate, não sei qual o mais recente- funciona por um tempo, talvez simplesmente pelo fato de impor alguma disciplina, mesmo absurda, à nossa alimentação.
O fato é que pus "Titanic" no vídeo. Afundei rapidamente no tédio; não sem antes ter experimentado momentos de radical perplexidade. O que os atores falavam parecia-me, na maior parte das vezes, um monte de interjeições ou grunhidos indignos de qualquer tradução. De quando em quando, uma palavra conhecida vinha boiando, náufraga, no mar da minha ignorância.
Lembro-me de um livro intitulado "O Inglês que Você Pensa que Sabe". Era, provavelmente, curto demais para as dimensões de nosso engano. Imagino que não haja nada de especial no inglês de "Titanic". Mas leio no folheto, por exemplo, que um personagem disse: "Ain't nothing to it, is there, Jack?". Isso quer dizer: "Não é tão difícil assim, não é, Jack?". E tenho vontade de responder: "É muito difícil, sim, Jack.".
Acho, em suma, que nunca saberemos inglês direito; no máximo, pensaremos estar falando e entendendo, mas não estaremos nunca falando nem entendendo nada.
Não é isso, aliás, o que ocorre com a tão desejada inserção do Brasil na economia globalizada? Nossa situação de dependência face aos Estados Unidos não muda nunca, enquanto nossa "modernização" prossegue a todo vapor; é como se sempre adquiríssemos um vocabulário maior e continuássemos em plena ignorância. O capitalismo brasileiro se intensifica, mas o "gap" não se altera. Quanto esforço para ficar no mesmo lugar!
Melhor passar para outro assunto. Fui ver "Alta Fidelidade", filme de Stephen Frears com John Cusack no papel principal. Ouvi muitos elogios à fita. Não consegui simpatizar muito com a história do ex-DJ que é abandonado pela namorada; ele passa o tempo todo fazendo confidências direto para a câmera, numa modalidade engraçadinha de curtir o complexo de rejeição.
O filme não é antipático. Pareceu-me um pouco vazio, muito centrado na dor-de-cotovelo. Mas posso entender as razões de seu sucesso. É que propõe uma modalidade aceitável, contemporânea, de enredo romântico.
Certamente, não há mais cabimento na fórmula do "casaram-se e foram felizes para sempre". Mas é também nítida a exaustão das pessoas com o descompromisso amoroso, com o descasamento e a troca de parceiros. "Alta Fidelidade" conta uma tentativa de reencontro, uma recuperação da estabilidade conjugal em tempos de inconstância.
Não por acaso, John Cusack é dono de uma loja especializada em discos de vinil. Pode-se ver nisso o símbolo de uma geração não apenas aferrada aos hábitos da adolescência, fiel a bandas de rock de dez ou 20 anos atrás, mas também presa de uma aspiração conservadora, ansiosa em conquistar a maturidade emocional, a monogamia negociada, a rotina da vida adulta.
Talvez o que estivesse em jogo em "Titanic" não fosse apenas o destino trágico do casal-jujuba; representava-se ali, para fascínio dos adolescentes românticos, o fracasso de uma idéia de amor "insubmergível" como o transatlântico; o encanto de "Alta Fidelidade" é o de que, sem grandes pretensões quanto ao destino e ao porto de chegada, todos, afinal, acabam sãos e salvos.


Texto Anterior: Moreira Salles presta serviço comunitário
Próximo Texto: Literatura: Primeiro Saramago pós-Nobel sai no dia 16
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.