|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Como ser feliz (mesmo não sabendo inglês)
Nunca tive a intenção de
ver de novo "Titanic". Um
só naufrágio me bastou; mas, como se sabe, houve quem assistisse
mais de 20 vezes ao filme de James Cameron, talvez por inconformismo diante da tragédia.
Era, sem dúvida, uma maneira
de fazer Leonardo DiCaprio e Kate Winslet reviverem; só que, no
final, eles morriam de novo, e então se impunha voltar ao cinema
outra vez.
Acontece que está à venda nas
bancas de jornal um vídeo do "Titanic", com as legendas em inglês.
Junto vem um folheto com a tradução das expressões mais difíceis. Faz parte de uma coleção de
vídeos publicada por "Speak Up"
-a revista de quem quer melhorar o próprio inglês.
Durante um bom tempo comprei "Speak Up"; foi na época em
que eu tinha toca-fitas no carro. A
revista vinha com uma fita (agora há versão em CD). Passei horas
no trânsito absorvendo entrevistas com Michael Douglas, Tom
Wolfe ou o ator que fazia o mordomo Alfred nos seriados do Batman. Em casa, teoricamente, eu
podia ler a revista, cheia de explicações sobre o que não dava para
entender.
Acho até que me ajudou no inglês. "Speak Up" é uma coisa muito bem-feita. Só que, claro, desisti
depois de algum tempo. O problema não está na revista, está em
nós mesmos. O que compramos
nas bancas não é exatamente
uma dose quinzenal de conhecimento da língua; é a perspectiva
de algum dia sabermos inglês perfeitamente.
É o que ocorre também com livros de auto-ajuda, dietas revolucionárias ou carteirinhas de sócio
numa academia de ginástica: o
que está à venda é a decisão de
mudar, de melhorar, não a mudança ou a melhora em si.
Claro que só essa decisão já nos
melhora um pouco. E todo regime
-mesmo aqueles baseados só em
frituras ou só em chocolate, não
sei qual o mais recente- funciona por um tempo, talvez simplesmente pelo fato de impor alguma
disciplina, mesmo absurda, à nossa alimentação.
O fato é que pus "Titanic" no vídeo. Afundei rapidamente no tédio; não sem antes ter experimentado momentos de radical perplexidade. O que os atores falavam
parecia-me, na maior parte das
vezes, um monte de interjeições
ou grunhidos indignos de qualquer tradução. De quando em
quando, uma palavra conhecida
vinha boiando, náufraga, no mar
da minha ignorância.
Lembro-me de um livro intitulado "O Inglês que Você Pensa
que Sabe". Era, provavelmente,
curto demais para as dimensões
de nosso engano. Imagino que
não haja nada de especial no inglês de "Titanic". Mas leio no folheto, por exemplo, que um personagem disse: "Ain't nothing to it,
is there, Jack?". Isso quer dizer:
"Não é tão difícil assim, não é,
Jack?". E tenho vontade de responder: "É muito difícil, sim,
Jack.".
Acho, em suma, que nunca saberemos inglês direito; no máximo, pensaremos estar falando e
entendendo, mas não estaremos
nunca falando nem entendendo
nada.
Não é isso, aliás, o que ocorre
com a tão desejada inserção do
Brasil na economia globalizada?
Nossa situação de dependência
face aos Estados Unidos não muda nunca, enquanto nossa "modernização" prossegue a todo vapor; é como se sempre adquiríssemos um vocabulário maior e continuássemos em plena ignorância. O capitalismo brasileiro se intensifica, mas o "gap" não se altera. Quanto esforço para ficar no
mesmo lugar!
Melhor passar para outro assunto. Fui ver "Alta Fidelidade",
filme de Stephen Frears com John
Cusack no papel principal. Ouvi
muitos elogios à fita. Não consegui simpatizar muito com a história do ex-DJ que é abandonado
pela namorada; ele passa o tempo
todo fazendo confidências direto
para a câmera, numa modalidade engraçadinha de curtir o complexo de rejeição.
O filme não é antipático. Pareceu-me um pouco vazio, muito
centrado na dor-de-cotovelo. Mas
posso entender as razões de seu
sucesso. É que propõe uma modalidade aceitável, contemporânea,
de enredo romântico.
Certamente, não há mais cabimento na fórmula do "casaram-se e foram felizes para sempre".
Mas é também nítida a exaustão
das pessoas com o descompromisso amoroso, com o descasamento
e a troca de parceiros. "Alta Fidelidade" conta uma tentativa de
reencontro, uma recuperação da
estabilidade conjugal em tempos
de inconstância.
Não por acaso, John Cusack é
dono de uma loja especializada
em discos de vinil. Pode-se ver nisso o símbolo de uma geração não
apenas aferrada aos hábitos da
adolescência, fiel a bandas de
rock de dez ou 20 anos atrás, mas
também presa de uma aspiração
conservadora, ansiosa em conquistar a maturidade emocional,
a monogamia negociada, a rotina da vida adulta.
Talvez o que estivesse em jogo
em "Titanic" não fosse apenas o
destino trágico do casal-jujuba;
representava-se ali, para fascínio
dos adolescentes românticos, o
fracasso de uma idéia de amor
"insubmergível" como o transatlântico; o encanto de "Alta Fidelidade" é o de que, sem grandes
pretensões quanto ao destino e ao
porto de chegada, todos, afinal,
acabam sãos e salvos.
Texto Anterior: Moreira Salles presta serviço comunitário Próximo Texto: Literatura: Primeiro Saramago pós-Nobel sai no dia 16 Índice
|