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CINEMA/ESTRÉIA
"DÍVIDA DE SANGUE"
Ator vive ex-agente do FBI após transplante de coração
Clint Eastwood se encontra entre a fama e o anonimato
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Dívida de Sangue" é um
filme cheio de ressonâncias que vêm, em parte, de certos
trocadilhos. É o caso do Zé Ninguém que ajuda Terry McCaleb
(Clint Eastwood) numa investigação e cujo sobrenome é Noone.
Noone ou "no one". Nome que
define bem esse personagem (de
Jeff Daniels), essa ausência. Ausência que é figura recorrente na
obra de Clint. Seu mestre, Sergio
Leone, escreveu e produziu um
faroeste chamado "Meu Nome É
Ninguém". Clint dirigiu "O Estranho sem Nome", outro faroeste.
É bem possível que existam outras ressonâncias desse tipo em
"Dívida de Sangue", assim como
o "serial killer" do filme deixa pistas e sinais para McCaleb.
O certo é que Clint gosta de interpretar anônimos, embora a celebridade de hoje quase o impeça
de retomá-los. Também é certo
que preza personagens com uma
segunda vida. O "estranho sem
nome" era um. O William Muny
de "Os Imperdoáveis", outro.
McCaleb não é um anônimo,
mas tem segunda vida: recebeu
em transplante o coração de uma
mulher morta em uma mercearia.
A irmã dessa mulher, Graciella,
surge para cobrar a dívida: quer
que ele descubra o assassino.
Segue-se uma série de convenções: McCaleb é um ex-agente do
FBI, aposentado em vista de seus
problemas cardíacos. Para voltar
à ativa, deve enfrentar a hostilidade dos tiras de Los Angeles, contar com a ajuda de uma ex-colega
etc. O importante é que ele deve
provar a si mesmo que merece a
segunda vida que recebeu.
O que se desenvolve entre o detetive e o criminoso é uma espécie
de flerte, em que este ao mesmo
tempo atrai o primeiro e coloca
no caminho uma série de obstáculos ao seu encontro. Quem quiser ver aí um caso de homossexualidade latente está liberado: é
mesmo. Mas não se trata de um
caminho muito interessante.
Bem mais intrigante é a sugestão do criminoso quando encontra seu adversário. Os dois seriam
um só, indispensáveis um ao outro. Eis Clint dotado não de uma,
mas de duas segundas vidas. Uma
se desenrola no tempo (e diz respeito ao coração da irmã de Graciella), a outra no espaço (e diz
respeito ao seu duplo demente).
A primeira envolve o sentimento de culpa por ter recebido a segunda vida à custa de outra pessoa. A segunda trata da mídia e
seus efeitos. McCaleb é uma personalidade pública: seus casos vão
para as capas dos jornais, e isso
faz dele celebridade, fato que instiga a ira de colegas de profissão.
Meter-se com McCaleb, portanto, é buscar os holofotes da TV e
os flashes dos fotógrafos. É uma
maneira de adquirir existência
pública. Ora, quem viu filmes de
Clint Eastwood sabe que ele, moralmente, não aceita a celebridade
(exemplo: o que Bill Muny, de "Os
Imperdoáveis", mais queria era
estar fora da lenda do Oeste).
No caso, existem dois McCaleb.
O primeiro, antes do transplante,
aprecia a luz dos refletores. O segundo, não: está imbuído de uma
missão. Esse é o que corresponde
à "moral" do filme, que grosseiramente pode se resumir assim: o
homem que aceita viver na vaidade, aceitando os signos que criam
para ele uma personalidade pública (a celebridade), apequena-se. A única grandeza aceitável em
um homem consiste em ser "ninguém", em preservar seu nome
das luzes quase pornográficas da
fama, em se retirar desse mundo
de aparências. McCaleb, convém
não esquecer, vive em um barco.
Talvez para facilitar sua retirada.
Dívida de Sangue
Blood Work
Direção: Clint Eastwood
Produção: EUA, 2002
Com: Clint Eastwood, Jeff Daniels
Quando: a partir de hoje nos cines
Gemini, Jardim Sul, Shopping D e circuito
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