São Paulo, sexta-feira, 08 de novembro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

"DÍVIDA DE SANGUE"

Ator vive ex-agente do FBI após transplante de coração

Clint Eastwood se encontra entre a fama e o anonimato

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Dívida de Sangue" é um filme cheio de ressonâncias que vêm, em parte, de certos trocadilhos. É o caso do Zé Ninguém que ajuda Terry McCaleb (Clint Eastwood) numa investigação e cujo sobrenome é Noone.
Noone ou "no one". Nome que define bem esse personagem (de Jeff Daniels), essa ausência. Ausência que é figura recorrente na obra de Clint. Seu mestre, Sergio Leone, escreveu e produziu um faroeste chamado "Meu Nome É Ninguém". Clint dirigiu "O Estranho sem Nome", outro faroeste.
É bem possível que existam outras ressonâncias desse tipo em "Dívida de Sangue", assim como o "serial killer" do filme deixa pistas e sinais para McCaleb.
O certo é que Clint gosta de interpretar anônimos, embora a celebridade de hoje quase o impeça de retomá-los. Também é certo que preza personagens com uma segunda vida. O "estranho sem nome" era um. O William Muny de "Os Imperdoáveis", outro.
McCaleb não é um anônimo, mas tem segunda vida: recebeu em transplante o coração de uma mulher morta em uma mercearia. A irmã dessa mulher, Graciella, surge para cobrar a dívida: quer que ele descubra o assassino.
Segue-se uma série de convenções: McCaleb é um ex-agente do FBI, aposentado em vista de seus problemas cardíacos. Para voltar à ativa, deve enfrentar a hostilidade dos tiras de Los Angeles, contar com a ajuda de uma ex-colega etc. O importante é que ele deve provar a si mesmo que merece a segunda vida que recebeu.
O que se desenvolve entre o detetive e o criminoso é uma espécie de flerte, em que este ao mesmo tempo atrai o primeiro e coloca no caminho uma série de obstáculos ao seu encontro. Quem quiser ver aí um caso de homossexualidade latente está liberado: é mesmo. Mas não se trata de um caminho muito interessante.
Bem mais intrigante é a sugestão do criminoso quando encontra seu adversário. Os dois seriam um só, indispensáveis um ao outro. Eis Clint dotado não de uma, mas de duas segundas vidas. Uma se desenrola no tempo (e diz respeito ao coração da irmã de Graciella), a outra no espaço (e diz respeito ao seu duplo demente).
A primeira envolve o sentimento de culpa por ter recebido a segunda vida à custa de outra pessoa. A segunda trata da mídia e seus efeitos. McCaleb é uma personalidade pública: seus casos vão para as capas dos jornais, e isso faz dele celebridade, fato que instiga a ira de colegas de profissão.
Meter-se com McCaleb, portanto, é buscar os holofotes da TV e os flashes dos fotógrafos. É uma maneira de adquirir existência pública. Ora, quem viu filmes de Clint Eastwood sabe que ele, moralmente, não aceita a celebridade (exemplo: o que Bill Muny, de "Os Imperdoáveis", mais queria era estar fora da lenda do Oeste).
No caso, existem dois McCaleb. O primeiro, antes do transplante, aprecia a luz dos refletores. O segundo, não: está imbuído de uma missão. Esse é o que corresponde à "moral" do filme, que grosseiramente pode se resumir assim: o homem que aceita viver na vaidade, aceitando os signos que criam para ele uma personalidade pública (a celebridade), apequena-se. A única grandeza aceitável em um homem consiste em ser "ninguém", em preservar seu nome das luzes quase pornográficas da fama, em se retirar desse mundo de aparências. McCaleb, convém não esquecer, vive em um barco. Talvez para facilitar sua retirada.

Dívida de Sangue
Blood Work


    
Direção: Clint Eastwood
Produção: EUA, 2002
Com: Clint Eastwood, Jeff Daniels Quando: a partir de hoje nos cines Gemini, Jardim Sul, Shopping D e circuito




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