São Paulo, Quarta-feira, 08 de Dezembro de 1999


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Onde é que está Arnaldo Baptista?


Folha visita ex-líder dos Mutantes, que vive recluso em Juiz de Fora; artista é revisitado por CD-tributo, "Onde É Que Está o Meu Rock'n'Roll", recém-lançado


'Cê tá pensando que sou lóki, bicho?'

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O músico/artista manipula binóculo/telescópio que inventou, com instalações ao fundo



O ex-mutante Arnaldo Baptista, homenageado em CD-tributo com bandas novas de Brasília, expõe um pouco da vida que leva no sítio de Juiz de Fora onde foi morar após acidente em 81


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial a Juiz de Fora

"Cê tá pensando que eu sou lóki, bicho? Sou malandro velho, não tenho nada com isso." O trecho do rock lançado em 74 por Arnaldo Baptista, então egresso havia pouco da mítica banda Mutantes, parece feito sob medida para a vida que ele leva hoje em dia.
Mais um de vários discos-tributos em homenagem aos Mutantes e a ele, "Onde É Que Está o Meu Rock'n'Roll? - Arnaldo Baptista Novamente Revisitado" (leia texto abaixo), recém-lançado, o traz de volta à cena pop e contrasta com a vida retirada e pacata que ele se acostumou a levar.
Arnaldo, 51, mora num sítio na estrada da Graminha, em Juiz de Fora (MG), desde os 80. Radicou-se lá com a mulher, Lucinha, após uma suposta tentativa de suicídio em 81 -pulou da janela da clínica em que estava internado, em São Paulo, como que numa versão à brasileira e rock'n'roll de "Laranja Mecânica".
Passou por um longo e lento processo de recuperação, que também ajudou a alimentar o mito em torno do co-protagonista -com a ex-mulher Rita Lee e o irmão Sérgio Dias Baptista- da banda que deu partida ao rock'n'roll não infantilóide brasileiro. Antes, lembre-se, tudo era Celly Campello e jovem guarda (até Raul Seixas fazia iê-iê-iê em 68, quando os Mutantes emergiram da explosão tropicalista).
Padecendo de sequelas -fraturou a base do crânio no acidente-, passou a pintar como hobby, atividade artística e terapia -sua casa é repleta de quadros seus, até na cozinha e no banheiro. Cria instalações com instrumentos musicais, aparelhos de som antigos e "cones acústicos" que espalha pelo estúdio/sala/ quarto em que passa a maior parte do tempo. Até nas árvores e pedras ele intervém.
"Pinto todo dia, geralmente de madrugada. Durmo às 21h, acordo à 1h. Tenho motivação maior de madrugada. Músicas não posso tocar, porque faz barulho. Então a gente pinta", explica.
Atravessa as madrugadas lendo também. O livro de agora é "Design for Dying", do guru do LSD e dos anos 60 Timothy Leary. "Ele planeja a morte, fala que no futuro o pessoal vai planejar até a data da morte. Colocou como epitáfio "To be continued". Vai saber o que ele quis dizer."
"Tem a ver com a letra de "Imagino" (uma das cinco faixas inéditas incluídas no CD), que diz: "Eu imagino a minha morte". É uma coisa esquisita, ele fala muito de energia pura e simples, sem corpo, sem ter sexo. É interessante, ser amado sem ter sexo. Ele está nessa, "to be continued". Você continua depois da morte. Sempre pensei e ainda penso, mas vai saber o que vai acontecer. Sempre penso: será que duro o dobro da minha idade? Não sei, 104 anos...", divaga.
Não se pense, porém, num homem melancólico. Menino grande, Arnaldo dá de ombros para o "lóki" que o mito faz vazar. Produz estampas para camisetas, inventa nomes para seus quadros - "Aranha-Céu", "Relógio Esferofônico" (com letras em vez de números), "Harém da Imaginação", "Dona Suficiência", "Lhams" (um bicho verde que espreita em várias telas).
Andava à cata de cogumelos para fazer chá, mas parou ("Uma vez ele passou mal do estômago, aí não quis mais", conta Lucinha). Brinca com os gatos Emerson e Bubulinha e se diverte com os trocadilhos que dispara de quando em quando. Um deles? "Sabe a conversa da avenca com a begônia? A avenca falou: "Ah, vem cá...". A begônia respondeu: "Não posso, tenho begônia". Loucura, loucura", e e cai na gargalhada.
Outro quadro, "Noôvôoar", evoca reflexões: "É novo, ovo, vôo e Arnaldo. Não é "Arnaldo, o vovô". Tenho um filho, Daniel, mas não sou avô. Tive ele com uma israelita bailarina. Afastei-me dela, só conheci Daniel quando ele tinha uns 18 anos. Ele é legal, um pouquinho mais alto que eu, olhos azuis e loiro. Às vezes tenho contato com ele, pode crer".
Compara a vida de antes, aventuresca, com a plácida de agora. "Eu viajava bastante, viajei até o Panamá de moto, era uma aventura. Uma coisa que me prende à vida é que agora fico mais em casa. Eu era muito sem alicerce, nômade. Às vezes tenho saudade daquelas viagens, mas hoje faria só se fosse num carro elétrico com eletricidade solar. Aí eu provaria alguma coisa. De moto, não. Nem de avião. Não tenho brevê."
Embora pouco ainda componha -Lucinha diz que não tem mais que cinco canções prontas-, ainda se alimenta de música. "Às vezes gravo à noite, decido uma faixa do próximo LP. Às vezes dá certo, às vezes não. Estudo diariamente instrumentos. Um dia estudo mais bateria, em outro, teclado, dou uma regada nas plantas."
Fala sobre algumas das inéditas presentes no tributo: ""Tacape" é de uma época da minha vida em que eu estava, pode-se dizer, em ostracismo. Não tinha muito o que fazer e fiz essa música. "Dança de um Outro Tempo" fiz quando tinha 7 anos. Estava lá em casa, almoçando com papai e mamãe. Veio uma inspiração, falei para minha mãe e ela botou na pauta."
E do tributo: "Tem um lado que pode ser que seja fundo de quintal e tal, mas os conjuntos são totalmente diferentes uns dos outros. Um segue uma coisa mais de pop linear, outro tem baterista ótimo, outro tem baixista, outro é o cantor. A gente fica escolhendo. É um disco de rock'n'roll. A gente dizia antigamente "lenha", tem uma pessoa que usa na música, "quer andar a pé, amor, é lenha". É o mesmo termo que a gente usava quando uma música era forte".
Diz não ter mais nenhum contato com os colegas da classe musical. "Nenhum vem aqui. O que viria seria Tim Maia, que toda vez que vinha cantar em Juiz de Fora falava de mim no show. Mas estava com pressa, não deu tempo. Eu gostava muito dele. Vendo Tim cantar, a gente via aquela garganta. Cantava com o nariz e com a boca. Eu tentava imitar."
Mantém uma coleção de discos de vinil, alfabeticamente organizada ("É para eu não me perder"). Não tem aparelho de CD. "CD, não, é esquisito. Só se alguém me "cedê" um aparelho", zomba.
Vem a pergunta inevitável. Arnaldo Baptista vive uma vida feliz? "É, sim, boa palavra. Pode crer", responde, o sorriso aberto. Na despedida, arremata a visita com cal e humor, brincando com repórter e fotógrafa: "Esqueci-me de oferecer uma placa de crê. A gente colocava no moedor e vocês levavam um pouco de pó de crê". E mais: "Se alguém perguntar por que sou louco, é porque gosto de sê-lo. Sou filatelista".


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora Dabliú.







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