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CINEMA
"Being John Malkovich" é verdadeira obra de arte
GERALD THOMAS
especial para a Folha
Com a contagem regressiva para o novo milênio, surge no ar (ou
na tela) uma inevitável demonstração de desespero dos cineastas
e das distribuidoras, ao deixar registrado que não são mais somente o comércio e o lucro que importam. O cinema independente
americano escalou a montanha e
agora diverte e educa milhões de
pessoas com sua visão peculiar,
descompromissada e, obviamente, obsessiva com os temas negligenciados pelos "grandes filmes".
Depois da década que afirmou o
poder de Tarantino, Jarmush, os
irmãos Coen, Lynch, Almodóvar
e Waters, surgem pequenos e preciosos filmes, cuja "matéria filosófica" e conteúdo poético trazem
de volta o tão esquecido "enigma"
cinematográfico, os paradoxos ou
"cunundrums" surrealistas, criados genialmente por Luis Buñuel.
Mais do que a ação ou a importância da história, o cinema está
voltando a ter a coragem de criar
arquétipos, construir fábulas ou,
simplesmente, retratar o amadorismo que existe em cada um de
nós, os espectadores que sonham.
Enquanto, nos grandes blockbusters, pessoas se esmurram e
criam polêmica, outras correm
apavoradas das bruxarias na floresta e soldados heróicos atravessam guerras e arriscam suas vidas
em nome da honra, alguns filmes
pequenos, como os do Dogma dinamarquês e agora "Being John
Malkovich", fazem trocadilhos do
inconsciente e nos devolvem ao
encantamento do sonho ou da
demência do nosso comportamento e código moral e social.
Labirintos surrealistas
Em "Being John Malkovich",
que estreou há poucas semanas
nos EUA e ainda sem data de exibição no Brasil, fala-se sobre a crise de identidade moderna com
muito humor. Aliás, fala-se do
"ator" e da nossa obsessão por celebridade com muito humor. Fala-se dos 15 minutos de fama e do
espelho de Narciso por meio de
uma intensa acrobacia mental,
que abre círculos e multiplica os
labirintos surreais como não se
via desde os filmes de Luis Buñuel. Parece uma versão psicodélica de um filme antigo de Buñuel,
misturado ao humor derrotista
de Woddy Allen.
A idéia é tão boa e tão surpreendente que nem ligamos muito para a fotografia medíocre. Tendo
conteúdo para filmar, o diretor
não se preocupa muito em como
filmá-lo. Também, pudera: o roteiro em si já deve ter lhe dado todas as dores de cabeça do mundo.
É, mais ou menos, assim: um
marioneteiro de rua (John Cusack), romântico, faustiano e que
pretende abordar as "grandes
questões", não tem mais vez e é
esmurrado na rua por alguém de
classe média que se sente insultado por suas pequeninas encenações. Desempregado e derrotado,
ele acaba trabalhando como arquivista numa firma que não ocupa nem um andar nem outro de
um prédio comercial: ocupa um
meio andar. Para ser preciso, o escritório é no "7º e meio" andar e,
por causa da altura mínima do teto, todos são obrigados a viver
curvados. Seu chefe, um homem
de mais de 100 anos, é um taradoe
se comporta como adolescente.
Trocadilho após trocadilho, o
nosso querido ex-marioneteiro
acaba por descobrir em seu escritório, atrás de uma estante de metal, um buraco cavernoso. Intrigado e atraído por esse misterioso
símbolo, que mais parece uma gigantesca garganta, ele entra nele e
por ele acaba sendo sugado, violentamente. De repente, tudo pára. Quando se dá conta de onde
está, o marioneteiro encontra-se
em pé num chuveiro, tomando
banho. Numa das cenas mais
inesquecíveis e aterrorizantes,
John Cusack só percebe o que
aconteceu quando aquele corpo
que está tomando banho se olha
no espelho. O que vê refletido não
é seu rosto, mas o rosto sombrio
de John Malkovich. Somente aí é
que Cusack percebe que está dentro da cabeça do famoso ator.
Sinistro, careca e com olheiras
transilvânicas, John Malkovich
aparenta tudo, menos a celebridade vaidosa e obcecada por si mesma que é. Ele parece um alien, algo saído de um experimento. Por
15 minutos, exatamente, o marioneteiro acompanha a vida, assim
como ela é, dentro da cabeça de
Malkovich. A câmera é o olho do
ator e, por meio dele, conhecemos
sua casa e suas grandes vaidades.
Cusack faz de sua descoberta
um comércio. Em pouco tempo,
transforma seu escritório numa
"shooting gallery", um labirinto
de viciados em drogas, fazendo fila pra receber o seu "fix". Um a
um, os clientes penetram a cabeça
de John Malkovich, como se fosse
mais uma droga, e o comércio
clandestino de identidades só tem
um fim quando cada cliente é
"cuspido" na New Jersey Turnpike (uma espécie de marginal Tietê), quando expira seu prazer
imediato.
Mas a história não fica somente
aí. Tudo se complica e fica ainda
mais engraçado quando a mulher
de Cusack se apaixona pela mesma mulher com quem o próprio
está tendo um quase-romance. As
duas querem ter um caso, mas
não um caso lésbico comum. Então combinam que uma entraria
(pelo mesmo buraco de sempre,
no escritório de Cusack) no corpo
de Malkovich e, por meio dele,
manteriam relações sexuais.
Imagine só a confusão e o cruzamento de associações que não
podemos fazer quando uma personalidade, por meio de uma outra, se apaixona e se relaciona na
pele de um ícone. No fim, é o próprio Cusack que se casa com a namorada, também por meio de
Malkovich, quando descobre a
fórmula para "ocupar", permanentemente, o corpo do ator.
Mas não acabou ainda. É o próprio John Malkovich que, suspeitando que algo de estranho está
acontecendo em sua vida, acaba
por descobrir a fila de homens solitários que querem entrar no buraco que leva a Malkovich. O que
acontece aí é indescritivelmente
hilariante. Contorcendo-se de rir,
o público observa o filme virar
uma cabala, um verdadeiro "cunundrum", um círculo de Escher,
um "looping" mental alucinado.
Afinal, Malkovich entra em seu
buraco e vai cair no cérebro do
"outro" Malkovich. Ele cai num
restaurante, que também poderia
ser chamado de "Andy Warhol's
Parlor", no qual todos os clientes
são John Malkovich, os garçons
são todos John Malkovich, o pianista é John Malkovich, assim é a
cantora que se esfrega montada
no piano e o menu só tem uma infindável lista de pratos que se chamam... Malkovich.
Continuar a descrever o filme
seria multiplicar redundâncias. O
descompromisso com a linearidade nos devolve a um ingenuidade surrealista.
Encarnando uma espécie de Nijinski dançando o ritual da morte,
Cusack, usando o corpo de Malkovich, leva o espectador àquele
território lúdico tão pouco explorado no cinema e nos faz sentir
como recém-saídos de uma daquelas sessões expressionistas-kitch de Ken Russel. É como se
ouvíssemos uma sinfonia que usa
"leitmotivs" para nos lembrar,
constantemente, de que o tema
recorrente é um mero aglomerador de símbolos que nos emocionam o tempo todo, pelo fato de
voltarem à tona constantemente.
E, quando o filme, assim como
uma sinfonia, se abre para transversais mais profusas e deliberadamente confusas, renova o nosso prazer em estar assistindo a
uma verdadeira obra de arte.
Avaliação:
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