São Paulo, Quarta-feira, 08 de Dezembro de 1999


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CINEMA
"Being John Malkovich" é verdadeira obra de arte

GERALD THOMAS
especial para a Folha

Com a contagem regressiva para o novo milênio, surge no ar (ou na tela) uma inevitável demonstração de desespero dos cineastas e das distribuidoras, ao deixar registrado que não são mais somente o comércio e o lucro que importam. O cinema independente americano escalou a montanha e agora diverte e educa milhões de pessoas com sua visão peculiar, descompromissada e, obviamente, obsessiva com os temas negligenciados pelos "grandes filmes".
Depois da década que afirmou o poder de Tarantino, Jarmush, os irmãos Coen, Lynch, Almodóvar e Waters, surgem pequenos e preciosos filmes, cuja "matéria filosófica" e conteúdo poético trazem de volta o tão esquecido "enigma" cinematográfico, os paradoxos ou "cunundrums" surrealistas, criados genialmente por Luis Buñuel.
Mais do que a ação ou a importância da história, o cinema está voltando a ter a coragem de criar arquétipos, construir fábulas ou, simplesmente, retratar o amadorismo que existe em cada um de nós, os espectadores que sonham.
Enquanto, nos grandes blockbusters, pessoas se esmurram e criam polêmica, outras correm apavoradas das bruxarias na floresta e soldados heróicos atravessam guerras e arriscam suas vidas em nome da honra, alguns filmes pequenos, como os do Dogma dinamarquês e agora "Being John Malkovich", fazem trocadilhos do inconsciente e nos devolvem ao encantamento do sonho ou da demência do nosso comportamento e código moral e social.

Labirintos surrealistas
Em "Being John Malkovich", que estreou há poucas semanas nos EUA e ainda sem data de exibição no Brasil, fala-se sobre a crise de identidade moderna com muito humor. Aliás, fala-se do "ator" e da nossa obsessão por celebridade com muito humor. Fala-se dos 15 minutos de fama e do espelho de Narciso por meio de uma intensa acrobacia mental, que abre círculos e multiplica os labirintos surreais como não se via desde os filmes de Luis Buñuel. Parece uma versão psicodélica de um filme antigo de Buñuel, misturado ao humor derrotista de Woddy Allen.
A idéia é tão boa e tão surpreendente que nem ligamos muito para a fotografia medíocre. Tendo conteúdo para filmar, o diretor não se preocupa muito em como filmá-lo. Também, pudera: o roteiro em si já deve ter lhe dado todas as dores de cabeça do mundo.
É, mais ou menos, assim: um marioneteiro de rua (John Cusack), romântico, faustiano e que pretende abordar as "grandes questões", não tem mais vez e é esmurrado na rua por alguém de classe média que se sente insultado por suas pequeninas encenações. Desempregado e derrotado, ele acaba trabalhando como arquivista numa firma que não ocupa nem um andar nem outro de um prédio comercial: ocupa um meio andar. Para ser preciso, o escritório é no "7º e meio" andar e, por causa da altura mínima do teto, todos são obrigados a viver curvados. Seu chefe, um homem de mais de 100 anos, é um taradoe se comporta como adolescente.
Trocadilho após trocadilho, o nosso querido ex-marioneteiro acaba por descobrir em seu escritório, atrás de uma estante de metal, um buraco cavernoso. Intrigado e atraído por esse misterioso símbolo, que mais parece uma gigantesca garganta, ele entra nele e por ele acaba sendo sugado, violentamente. De repente, tudo pára. Quando se dá conta de onde está, o marioneteiro encontra-se em pé num chuveiro, tomando banho. Numa das cenas mais inesquecíveis e aterrorizantes, John Cusack só percebe o que aconteceu quando aquele corpo que está tomando banho se olha no espelho. O que vê refletido não é seu rosto, mas o rosto sombrio de John Malkovich. Somente aí é que Cusack percebe que está dentro da cabeça do famoso ator.
Sinistro, careca e com olheiras transilvânicas, John Malkovich aparenta tudo, menos a celebridade vaidosa e obcecada por si mesma que é. Ele parece um alien, algo saído de um experimento. Por 15 minutos, exatamente, o marioneteiro acompanha a vida, assim como ela é, dentro da cabeça de Malkovich. A câmera é o olho do ator e, por meio dele, conhecemos sua casa e suas grandes vaidades.
Cusack faz de sua descoberta um comércio. Em pouco tempo, transforma seu escritório numa "shooting gallery", um labirinto de viciados em drogas, fazendo fila pra receber o seu "fix". Um a um, os clientes penetram a cabeça de John Malkovich, como se fosse mais uma droga, e o comércio clandestino de identidades só tem um fim quando cada cliente é "cuspido" na New Jersey Turnpike (uma espécie de marginal Tietê), quando expira seu prazer imediato.
Mas a história não fica somente aí. Tudo se complica e fica ainda mais engraçado quando a mulher de Cusack se apaixona pela mesma mulher com quem o próprio está tendo um quase-romance. As duas querem ter um caso, mas não um caso lésbico comum. Então combinam que uma entraria (pelo mesmo buraco de sempre, no escritório de Cusack) no corpo de Malkovich e, por meio dele, manteriam relações sexuais.
Imagine só a confusão e o cruzamento de associações que não podemos fazer quando uma personalidade, por meio de uma outra, se apaixona e se relaciona na pele de um ícone. No fim, é o próprio Cusack que se casa com a namorada, também por meio de Malkovich, quando descobre a fórmula para "ocupar", permanentemente, o corpo do ator.
Mas não acabou ainda. É o próprio John Malkovich que, suspeitando que algo de estranho está acontecendo em sua vida, acaba por descobrir a fila de homens solitários que querem entrar no buraco que leva a Malkovich. O que acontece aí é indescritivelmente hilariante. Contorcendo-se de rir, o público observa o filme virar uma cabala, um verdadeiro "cunundrum", um círculo de Escher, um "looping" mental alucinado.
Afinal, Malkovich entra em seu buraco e vai cair no cérebro do "outro" Malkovich. Ele cai num restaurante, que também poderia ser chamado de "Andy Warhol's Parlor", no qual todos os clientes são John Malkovich, os garçons são todos John Malkovich, o pianista é John Malkovich, assim é a cantora que se esfrega montada no piano e o menu só tem uma infindável lista de pratos que se chamam... Malkovich.
Continuar a descrever o filme seria multiplicar redundâncias. O descompromisso com a linearidade nos devolve a um ingenuidade surrealista.
Encarnando uma espécie de Nijinski dançando o ritual da morte, Cusack, usando o corpo de Malkovich, leva o espectador àquele território lúdico tão pouco explorado no cinema e nos faz sentir como recém-saídos de uma daquelas sessões expressionistas-kitch de Ken Russel. É como se ouvíssemos uma sinfonia que usa "leitmotivs" para nos lembrar, constantemente, de que o tema recorrente é um mero aglomerador de símbolos que nos emocionam o tempo todo, pelo fato de voltarem à tona constantemente.
E, quando o filme, assim como uma sinfonia, se abre para transversais mais profusas e deliberadamente confusas, renova o nosso prazer em estar assistindo a uma verdadeira obra de arte.


Avaliação:     

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