São Paulo, sexta-feira, 08 de dezembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY

Que viva a Espanha e a fúria de sua renascença

Um banco espanhol acaba de comprar o Banespa por um preço que espantou gregos e troianos, inclusive o carioca que sou, desligado atavicamente dessas mumunhas econômicas e financeiras. Meus gurus na matéria são o Luís Nassif e o Celso Pinto, e acho que eles estão de acordo: a Espanha está jorrando capital, dinheiro que cata negócios até mesmo arriscados, como a compra de um banco estatal cheio de buracos.
E mais: os espanhóis foram até perdulários, dando um lance considerado absurdo, fora do alcance do mercado. Burrice ou esperteza? Um ditado popular, referendado pelo veredicto dos séculos, garante que só louco rasga dinheiro. A Espanha ficou louca?
Não. Ficou rica e consciente do peso de sua história. Não é apenas no setor financeiro e das comunicações que a Espanha ensaia -até agora com sucesso- uma investida em direção ao pódio do novo milênio. No plano da cultura, ela surge (ou ressurge) como potência milenar, graças a diversos fatores, inclusive e principalmente a força de sua língua, hoje a terceira mais falada no mundo, após a chinesa e a inglesa. Sendo que, em breve, de acordo com os entendidos, será a segunda, superando a inglesa. E só perdendo da chinesa numericamente, pois chinês continua nascendo aos montes- mais alguns anos, e dobrarão a casa do segundo bilhão.
Numa recente palestra em Guadalajara, minha amiga Nélida Piñon, uma das homenageadas da feira do livro mais importante da América Latina, falou sobre a força irradiadora do idioma espanhol. Pelo menos no Ocidente, fica emparelhado com o inglês como língua alternativa. Desbancou o francês, que no passado chegou a ser o segundo idioma, inclusive no Oriente.
E não se trata de uma língua técnica, como o inglês, mas exclusivamente cultural. Filósofos, santos, reformadores, poetas, escritores, artistas de todos os calibres criaram um caldo, uma geléia espiritual que se confunde com a própria história universal. Cervantes, Góngora, Ignacio de Loyola, são Domingos, Velázquez, Goya, El Greco, Picasso, Miró, Unamuno, García Lorca, Teresa de Ávila, Juan de la Cruz, Gaudí, Buñuel -cito aleatoriamente- foram importantes não apenas dentro dos limites da Espanha, da latinidade. Cada país tem os seus profetas que falam pelo próprio povo, mas a Espanha, em muitos sentidos, foi a mais universal. Os espanhóis falaram pelo homem.
Poderosa materialmente em diversas fases da história, dominando grandes parcelas do mundo ocidental, alastrando sua influência cultural ao longo dos séculos, a Espanha passou pela sua ""escura noite da alma" -para recorrermos à badalada citação de são Juan de la Cruz. A Guerra Civil, nos anos 30, foi um divisor de águas para o século que acaba, "trailler" e laboratório da Segunda Guerra Mundial, ponto de encontro das ideologias que marcariam o nosso tempo.
A ditadura que se seguiu mergulhou a Espanha num tenebroso recesso, obrigando seus artistas a emigrarem, tornando-se duplamente universais. Curiosamente, a ditadura gerou um retorno à monarquia constitucional, considerada absurda, pois o pior malefício de um regime totalitário é criar péssimos sucessores.
A renascença espanhola começou de mansinho, valorizando o turismo, industrializando-se pouco a pouco, retomando os laços com a generosa porção obtida nos tempos de seus grandes navegadores e conquistadores. No mais duro momento do bloqueio a Cuba, a ditadura anticomunista de Franco mantinha vôos regulares da Ibéria para a ilha comunista de Fidel, comprava seus charutos, apesar da cara feia dos americanos, que consideravam um romeo y julieta como arma ideológica.
Generosidade do ditador? Não. Os laços ancestrais com o mundo hispânico da América Latina teriam de continuar, sangue é sangue, e sangue espanhol é duro de roer.
Se no plano econômico a Espanha ficou rica e quase perdulária (vide caso do Banespa), no setor cultural ela criou uma espécie de imperialismo "light" -seja lá o que for esse tipo de imperialismo. Basta dizer que, na Feira do Livro de Guadalajara, em novembro passado, a delegação espanhola contava com cem escritores de diversos calibres. Cotando-se cada participante a US$ 10 mil (viagem, hotel, alimentação, eventos), o Ministério da Cultura e as editoras espanholas torraram US$ 1 milhão para demonstrar o poder e a garra -poderia dizer a "fúria"- com que ela penetra no pensamento e no bolso do homem contemporâneo.
Nélida Piñon usou uma expressão feliz ao falar da força irradiadora da língua espanhola. Poderia citar diversos autores que colocam a língua como o diferencial básico de um povo, de uma cultura. Assim foram o grego e o latim. Assim foi o francês e está sendo o inglês.
O século 21, que vai começar daqui a pouco, terá alguma coisa de "cucaracha". A expressão pode parecer pejorativa, mas já tivemos tempos dominados pelos comedores de rosbife da Inglaterra, pelos comedores de alho da França e pelos comedores de hambúrguer dos Estados Unidos. Dá tudo no mesmo.



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