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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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LITERATURA

Ian McEwan imerge em níveis diversos de inocência

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Uma das lições que o escritor americano Henry James ajudou a estabelecer na ficção pós-realista é que tudo depende do ponto de vista. Afinal, o jovem inglês do romance de Ian McEwan é vítima das circunstâncias ou cúmplice dum ato terrível, traidor de seu país ou homem cegado pela paixão? Depende....
Esta narrativa de McEwan, vencedor do Whitbread Award e do Booker Prize, é estranha por si. Mistura uma história de amor (e a sutil análise envolvida dos meandros do relacionamento humano) e uma trama de espionagem à Graham Greene. Há, nas cenas de maior impacto cruento, uma indisfarçável dose de humor negro.
O técnico em engenharia Leonard Marnham chega em Berlim em 1955, seis anos antes de o Muro ser erguido. A cidade está repartida em zonas: a dos soviéticos, a dos americanos etc. Segredos políticos e militares são vendidos no mercado negro como carne no açougue.
Marnham vai trabalhar numa operação conjunta entre britânicos e americanos. Logo aprende que a empreitada abrange níveis de sigilo. Promovido ao terceiro nível, vê que a operação consiste na construção de um túnel até o setor soviético, para plantar uma estrutura de escuta nos cabos de comunicação. O túnel foi construído de fato e se chamou Operação Gold.
O rapaz mais tarde vem a saber que há um quarto nível de informação e até um quinto, do qual apenas os soviéticos têm ciência. Marnham aporta inocente nesse mundo difuso. Ele é virgem nas relações de espionagem e nas carnais. Quem o introduz nas primeiras é o agente Bob Glass e, nas segundas, a alemã Maria Eckdorf.
Separada do marido violento, herói da Segunda Guerra, é Maria quem chama Marnham de inocente, de puro, de casto. É ela quem o ensinará que a realidade é mais complexa, que a linha que separa "a inocência da experiência" é "arrebatadoramente vaga".
"O relacionamento especial" do subtítulo do livro pode aludir tanto à precária cooperação entre britânicos e americanos quanto à história de Maria e Marnham. A inocência remete a seu oposto, a experiência, e ao conhecimento dos aspectos antes sigilosos das coisas e, por fim, à conduta correta diante desses frutos proibidos.
Marnham vai descobrir que tudo está implicado. Entre vencedores e vencidos, espiões e espionados, aliados e inimigos, os crimes hediondos podem ter motivações nobres (e a inocência como sinônimo de ignorância dos fatos é sucedida pela inocência presumível, que depende de interpretação) e podem ser acobertados por interesses menos excelsos.
Como em Kafka (autor de uma das epígrafes ao romance), Marnham se move numa realidade estranha, que falha em compreender. Mas, ao contrário dos heróis do tcheco, ele percebe o crime que cometeu (embora o negue) e se inteira do sentido de tudo. Esse sentido só pode ser construído a partir de um ponto de vista oculto por quase todo o romance: o de Maria. É ela, como Molly Bloom, de "Ulisses", de Joyce, quem fornece a nota completa. Depende dela, de seu ponto de vista, a chave para o conhecimento.


O Inocente
   
Autor: Ian McEwan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42,50 (328 págs.)
Leia entrevista com o autor na Folha Online - www.folha.com.br/ilustrada




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