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MARCELO COELHO
Casa rica. Um banjo. 628 cadeiras
Há coisa de dois ou três anos,
eu costumava passar perto
dos estúdios de um canal de TV
aberta, especializado em programas para as classes C e D. Às vezes
eu topava com algum astro da
emissora -um animador de auditório, uma apresentadora de
programa feminino, esse ou
aquele comentarista esportivo,
sem contar as ocasionais modelos
e chacretes procurando emprego.
Foi só mais tarde -num dia
em que vi dois anõezinhos saindo
do prédio da empresa- que atinei com um fato óbvio: muita coisa da televisão popular se origina
diretamente do circo; quem sabe
o que nos choca ver transmitido
por satélite seja natural num picadeiro.
Pedro de Lara, Renato Aragão e
Sérgio Mallandro, pelo que sei,
vieram da carreira circense; Chacrinha tinha muito, é claro, de palhaço, e faço idéia que o figurino
da Xuxa até que poderia ser o de
uma trapezista, malabarista ou
amazona.
Na avenida Francisco Matarazzo, perto de onde moro, há dois
circos em funcionamento. Não
poderiam ser mais opostos em
concepção, público e estilo. Tinham me recomendado o Circo
Zanni, mais moderno e alternativo; entrei por engano no Circo Espacial, que não custava mais barato, mas era popular até dizer
chega.
Os números clássicos -palhaços trocando cusparadas, mocinhas suspensas pelos cabelos, rosas decepadas num estalo de chicote- ocuparam pouco tempo do
espetáculo. Logo se organizou, supervisionada por um palhaço,
uma gincana do tipo "qual é a
música", exatamente como nos
programas de auditório. O show
ainda teve, para minha surpresa,
uma peroração à moda dos pastores da Record. Em resumo, o
circo deixava de influenciar a televisão para ser, agora, influenciado por ela.
Na semana seguinte fui ao Circo Zanni, menor e mais sofisticado. Vi números clássicos também:
o palhaço que pedalava na menor
bicicleta do mundo, o beijo a pique do casal pendurado no trapézio, a moça de guarda-chuvinha
branco medindo passo a passo a
corda bamba. Tudo se tornara,
entretanto, mais irônico e erudito; o número da dupla trapezista
brincava com as convenções do
tango argentino, a aramista usara antes um grande guarda-chuva preto de verdade, respingando
água na platéia... de modo que
uma ambigüidade entre suspense
e riso, entre o literal e o alusivo,
punha-se em jogo no espetáculo.
Claro, toda cultura erudita
pressupõe uma platéia mais descrente, menos ávida de desafogo e
de catarse. Vários artistas do circo
Zanni pareciam vir da classe média alta -e isso se deve ao fato de
que, hoje, há cursos de circo assim
como de teatro, à disposição de
quem quiser se matricular. Antigamente, era uma arte que se
transmitia de pai para filho.
É provável que, com isso, duas
modalidades diferentes de circo
tendam a separar-se mais e mais,
conforme as próprias divisões sociais dos artistas e do público: um
circo mais "erudito", com uma
linguagem vinculada ao teatro e
à dança modernos, e um circo
"popular", influenciado pela televisão e pela música sertaneja.
Tudo isso é especulação, claro;
mas vale notar outra reviravolta
de influências nesse processo. Se
agora o teatro moderno inspira
um tipo de circo, é verdade também que o circo passa a ocupar
bastante os palcos de teatro -vide a companhia dos Parlapatões,
ou as montagens de Cacá Rosset.
Mais ainda: retribui-se com isso
uma velha dívida. Penso em que
medida, por exemplo, as peças de
Nelson Rodrigues não se basearam nos dramalhões representados nos circos de antigamente.
O Circo Nerino, por exemplo. A
editora Códex acaba de publicar
um belíssimo livro, com quase
quatrocentas páginas de grande
formato, contando a história desse circo que, de 1913 a 1964, excursionou por todo o Brasil. A qualidade da documentação é impressionante. Roger Avanzi, o palhaço Picolino 2º, hoje com 82 anos, é
filho de Nerino Avanzi, (o Picolino 1º), fundador do circo. O livro
traz fotos e recortes do seu arquivo, além do extenso e comovente
depoimento que prestou a Verônica Tamaoki.
Comovente não é bem a palavra, porque logo pensamos numa
atitude melancólica, em condescendências com o declínio, numa
poesia do precário e do mambembe. Ao contrário, o que nos conta
o livro é uma vida aventurosa,
empreendedora, várias vezes trágica, mas sempre apaixonada.
Acompanhamos, ao mesmo
tempo, a própria história do Brasil. O circo, que antes da guerra
viajava de barco e de trem, vai
aos poucos se convertendo ao
transporte rodoviário: até um
trator foi comprado para ajudar
nas estradas mais difíceis. Outras
dificuldades tinham de ser vencidas com diplomacia: conquistar o
apoio dos padres era essencial nas
cidades pequenas, ao mesmo
tempo em que gestos de entendimento tinham também de ser feitos para a comunidade dos maçons.
Casamentos, sucessos, acidentes, mortes, rivalidades, gastos,
investimentos, tudo está documentado, e tudo vale a pena ler. O
inventário do circo, feito em 1964,
é transcrito na íntegra, e tem a
eloquência angulosa de um poema modernista. Cito alguns itens
apenas: "Cenários de pano (7 x
4,5m): Casa rica. Casa média. Casa pobre. Altar com anjos. Senzala. Guanabara. Casa de Sheik.
Navio com a cabeça dos marinheiros aparecendo nas escotilhas". Outros itens: "Tabuletas de
preços e avisos. Postes de luz. Cadeiras: 628 unidades. Um trombone. Um banjo".
O mais bonito, entretanto, são
as fotos. Por vezes, vemos a lona
do circo em vista aérea, ocupando
vasto terreno numa cidade desértica; outras vezes é a companhia
em traje de gala, em plena glória
de artistas. Melhor que tudo, há
as fotos do público, algumas pessoas espiando a câmera de soslaio; as outras, a maioria, reaparece nessas páginas com os olhos
perdidos no espetáculo, perdidos
no sonho e também perdidos no
tempo.
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