São Paulo, quarta-feira, 08 de dezembro de 2004

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MARCELO COELHO

Casa rica. Um banjo. 628 cadeiras

Há coisa de dois ou três anos, eu costumava passar perto dos estúdios de um canal de TV aberta, especializado em programas para as classes C e D. Às vezes eu topava com algum astro da emissora -um animador de auditório, uma apresentadora de programa feminino, esse ou aquele comentarista esportivo, sem contar as ocasionais modelos e chacretes procurando emprego.
Foi só mais tarde -num dia em que vi dois anõezinhos saindo do prédio da empresa- que atinei com um fato óbvio: muita coisa da televisão popular se origina diretamente do circo; quem sabe o que nos choca ver transmitido por satélite seja natural num picadeiro.
Pedro de Lara, Renato Aragão e Sérgio Mallandro, pelo que sei, vieram da carreira circense; Chacrinha tinha muito, é claro, de palhaço, e faço idéia que o figurino da Xuxa até que poderia ser o de uma trapezista, malabarista ou amazona.
Na avenida Francisco Matarazzo, perto de onde moro, há dois circos em funcionamento. Não poderiam ser mais opostos em concepção, público e estilo. Tinham me recomendado o Circo Zanni, mais moderno e alternativo; entrei por engano no Circo Espacial, que não custava mais barato, mas era popular até dizer chega.
Os números clássicos -palhaços trocando cusparadas, mocinhas suspensas pelos cabelos, rosas decepadas num estalo de chicote- ocuparam pouco tempo do espetáculo. Logo se organizou, supervisionada por um palhaço, uma gincana do tipo "qual é a música", exatamente como nos programas de auditório. O show ainda teve, para minha surpresa, uma peroração à moda dos pastores da Record. Em resumo, o circo deixava de influenciar a televisão para ser, agora, influenciado por ela.
Na semana seguinte fui ao Circo Zanni, menor e mais sofisticado. Vi números clássicos também: o palhaço que pedalava na menor bicicleta do mundo, o beijo a pique do casal pendurado no trapézio, a moça de guarda-chuvinha branco medindo passo a passo a corda bamba. Tudo se tornara, entretanto, mais irônico e erudito; o número da dupla trapezista brincava com as convenções do tango argentino, a aramista usara antes um grande guarda-chuva preto de verdade, respingando água na platéia... de modo que uma ambigüidade entre suspense e riso, entre o literal e o alusivo, punha-se em jogo no espetáculo.
Claro, toda cultura erudita pressupõe uma platéia mais descrente, menos ávida de desafogo e de catarse. Vários artistas do circo Zanni pareciam vir da classe média alta -e isso se deve ao fato de que, hoje, há cursos de circo assim como de teatro, à disposição de quem quiser se matricular. Antigamente, era uma arte que se transmitia de pai para filho.
É provável que, com isso, duas modalidades diferentes de circo tendam a separar-se mais e mais, conforme as próprias divisões sociais dos artistas e do público: um circo mais "erudito", com uma linguagem vinculada ao teatro e à dança modernos, e um circo "popular", influenciado pela televisão e pela música sertaneja.
Tudo isso é especulação, claro; mas vale notar outra reviravolta de influências nesse processo. Se agora o teatro moderno inspira um tipo de circo, é verdade também que o circo passa a ocupar bastante os palcos de teatro -vide a companhia dos Parlapatões, ou as montagens de Cacá Rosset. Mais ainda: retribui-se com isso uma velha dívida. Penso em que medida, por exemplo, as peças de Nelson Rodrigues não se basearam nos dramalhões representados nos circos de antigamente.
O Circo Nerino, por exemplo. A editora Códex acaba de publicar um belíssimo livro, com quase quatrocentas páginas de grande formato, contando a história desse circo que, de 1913 a 1964, excursionou por todo o Brasil. A qualidade da documentação é impressionante. Roger Avanzi, o palhaço Picolino 2º, hoje com 82 anos, é filho de Nerino Avanzi, (o Picolino 1º), fundador do circo. O livro traz fotos e recortes do seu arquivo, além do extenso e comovente depoimento que prestou a Verônica Tamaoki.
Comovente não é bem a palavra, porque logo pensamos numa atitude melancólica, em condescendências com o declínio, numa poesia do precário e do mambembe. Ao contrário, o que nos conta o livro é uma vida aventurosa, empreendedora, várias vezes trágica, mas sempre apaixonada.
Acompanhamos, ao mesmo tempo, a própria história do Brasil. O circo, que antes da guerra viajava de barco e de trem, vai aos poucos se convertendo ao transporte rodoviário: até um trator foi comprado para ajudar nas estradas mais difíceis. Outras dificuldades tinham de ser vencidas com diplomacia: conquistar o apoio dos padres era essencial nas cidades pequenas, ao mesmo tempo em que gestos de entendimento tinham também de ser feitos para a comunidade dos maçons.
Casamentos, sucessos, acidentes, mortes, rivalidades, gastos, investimentos, tudo está documentado, e tudo vale a pena ler. O inventário do circo, feito em 1964, é transcrito na íntegra, e tem a eloquência angulosa de um poema modernista. Cito alguns itens apenas: "Cenários de pano (7 x 4,5m): Casa rica. Casa média. Casa pobre. Altar com anjos. Senzala. Guanabara. Casa de Sheik. Navio com a cabeça dos marinheiros aparecendo nas escotilhas". Outros itens: "Tabuletas de preços e avisos. Postes de luz. Cadeiras: 628 unidades. Um trombone. Um banjo".
O mais bonito, entretanto, são as fotos. Por vezes, vemos a lona do circo em vista aérea, ocupando vasto terreno numa cidade desértica; outras vezes é a companhia em traje de gala, em plena glória de artistas. Melhor que tudo, há as fotos do público, algumas pessoas espiando a câmera de soslaio; as outras, a maioria, reaparece nessas páginas com os olhos perdidos no espetáculo, perdidos no sonho e também perdidos no tempo.


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