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Crítica/"Por Trás dos Vidros"
Coletânea traz a rica narrativa protocolar de Modesto Carone
Tradutor de Kafka lança antologia "Por Trás dos Vidros", com produção recente e contos que estavam fora de catálogo
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Esse modo de entender o cruzamento
de mobilidade e estado de alerta merecia ser mais
explorado." A frase, quase ao final de "Utopia do Jardim-de-Inverno", de Modesto Carone,
soa como uma convocação para
os leitores-exploradores: o conto fecha seu novo livro, "Por
Trás dos Vidros", e ilumina retrospectivamente todo o percurso do autor de "As Marcas
do Real", "Aos Pés de Matilda"
e "Dias Melhores".
O volume inclui narrativas
desses livros, que estavam fora
do mercado, e agrega sua produção mais recente, com textos
que haviam sido publicados em
coletâneas e periódicos (vários
em edições especiais e cadernos da Folha).
"Utopia do Jardim-de-Inverno" funciona como suma poética de um escritor que busca
perspectivas insólitas e contempla antes as frestas das coisas do que sua inteireza, como
a indicar que seres e entes perderam legibilidade, tornaram-se opacos.
No conto em questão (que
em "As Marcas do Real" tinha
título ligeiramente diferente),
um narrador confinado a um
mundo doméstico de plantas e
pássaros faz a anatomia desse
"conjunto minuciosamente regulado e no entanto livre das
suas formas de acomodação".
Prosa quase abstrata
O resultado é uma prosa quase abstrata, e no entanto extremamente legível, sem qualquer
vestígio de pirotecnias formais
ou arroubos metafóricos. Seu
objeto são situações em que um
sujeito contempla a si mesmo,
examina suas reações e hesitações, posterga o ato: o excesso
de reflexão oblitera a ação, reduzida ao mínimo.
Nessa paralisia, porém, está
contida a possibilidade de perceber as forças invisíveis que
governam a produção germinal
da existência, os sinais inscritos na engrenagem da história
-e por isso o narrador, em dado momento, diz que "uma luz
inusitada pode trazer à tona todo um traçado de manifestações riquíssimas até então latentes no seio de uma falsa
imobilidade".
Nos 11 contos de "Por Trás
dos Vidros" que estavam inéditos em livro, há uma retomada
dessas visões parciais, desses
núcleos de inteligibilidade
-sem prejuízo da comoção.
Em "O Natal do Viúvo", à descrição dos utensílios de um sobrado imerso no silêncio se somam reminiscências de uma
personagem que é coisa entre
coisas. Em "Dueto para Corda e
Saxofone", uma cena de suicídio se resume na preocupação
metódica com o artefato mais
propício ao ato radical, que
nem o esplendor do sol e da
música ao longe pode deter.
E, no conto que dá título ao livro, a lembrança de uma viagem em companhia da mulher
enferma se cristaliza na descrição de um café numa estação de
trem a que ambos chegam por
um erro de itinerário: toda vivência, na prosa de Carone,
confina nesses momentos que,
sem patetismo, anunciam uma
morte entrevista por trás dos
vidros, por mediações que postergam e eludem.
Atividade de tradutor
Já se tornou lugar-comum
relacionar a literatura de Carone a sua atividade como tradutor de Kafka e estudioso de poetas como Georg Trakl e Paul
Celan. Seu estilo protocolar,
kafkiano, e as deformações antinaturalistas de seus contos
confirmam a epígrafe de Adorno: "Quando mergulhamos em
nós mesmos não descobrimos
uma personalidade autônoma
desvinculada de momentos sociais, mas as marcas do sofrimento do mundo alienado".
Essa coletânea é também a
oportunidade de contrastar as
curtíssimas narrativas de Carone com seu único livro mais extenso, "Resumo de Ana". A diferença não é meramente formal. Nessa obra de 1998, as trajetórias paralelas de ascensão e
miséria de uma empregada doméstica órfã e de seu filho mostravam as repetições da história brasileira, dos desastres que
pontuam a narrativa e se estendem da crise de 1929 até o regime militar.
Em "Por Trás dos Vidros", o
mundo efetivo também aparece, mas em miniatura e de modo enviesado. No conto "Café
das Flores", um litígio verbal
(com elementos oníricos) entre
dois amantes tem como pano
de fundo um confronto entre
assaltantes e policiais. Aqui,
porém, a violência urbana não
passa de "quimera", a face visível de uma destruição capilar
que deixa suas marcas no real
-e na prosa de Carone.
POR TRÁS DOS VIDROS
Autor: Modesto Carone
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (208 págs.)
Avaliação: ótimo
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