São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

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Crítica/"Por Trás dos Vidros"

Coletânea traz a rica narrativa protocolar de Modesto Carone

Tradutor de Kafka lança antologia "Por Trás dos Vidros", com produção recente e contos que estavam fora de catálogo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Esse modo de entender o cruzamento de mobilidade e estado de alerta merecia ser mais explorado." A frase, quase ao final de "Utopia do Jardim-de-Inverno", de Modesto Carone, soa como uma convocação para os leitores-exploradores: o conto fecha seu novo livro, "Por Trás dos Vidros", e ilumina retrospectivamente todo o percurso do autor de "As Marcas do Real", "Aos Pés de Matilda" e "Dias Melhores".
O volume inclui narrativas desses livros, que estavam fora do mercado, e agrega sua produção mais recente, com textos que haviam sido publicados em coletâneas e periódicos (vários em edições especiais e cadernos da Folha).
"Utopia do Jardim-de-Inverno" funciona como suma poética de um escritor que busca perspectivas insólitas e contempla antes as frestas das coisas do que sua inteireza, como a indicar que seres e entes perderam legibilidade, tornaram-se opacos. No conto em questão (que em "As Marcas do Real" tinha título ligeiramente diferente), um narrador confinado a um mundo doméstico de plantas e pássaros faz a anatomia desse "conjunto minuciosamente regulado e no entanto livre das suas formas de acomodação".

Prosa quase abstrata
O resultado é uma prosa quase abstrata, e no entanto extremamente legível, sem qualquer vestígio de pirotecnias formais ou arroubos metafóricos. Seu objeto são situações em que um sujeito contempla a si mesmo, examina suas reações e hesitações, posterga o ato: o excesso de reflexão oblitera a ação, reduzida ao mínimo.
Nessa paralisia, porém, está contida a possibilidade de perceber as forças invisíveis que governam a produção germinal da existência, os sinais inscritos na engrenagem da história -e por isso o narrador, em dado momento, diz que "uma luz inusitada pode trazer à tona todo um traçado de manifestações riquíssimas até então latentes no seio de uma falsa imobilidade".
Nos 11 contos de "Por Trás dos Vidros" que estavam inéditos em livro, há uma retomada dessas visões parciais, desses núcleos de inteligibilidade -sem prejuízo da comoção.
Em "O Natal do Viúvo", à descrição dos utensílios de um sobrado imerso no silêncio se somam reminiscências de uma personagem que é coisa entre coisas. Em "Dueto para Corda e Saxofone", uma cena de suicídio se resume na preocupação metódica com o artefato mais propício ao ato radical, que nem o esplendor do sol e da música ao longe pode deter.
E, no conto que dá título ao livro, a lembrança de uma viagem em companhia da mulher enferma se cristaliza na descrição de um café numa estação de trem a que ambos chegam por um erro de itinerário: toda vivência, na prosa de Carone, confina nesses momentos que, sem patetismo, anunciam uma morte entrevista por trás dos vidros, por mediações que postergam e eludem.

Atividade de tradutor
Já se tornou lugar-comum relacionar a literatura de Carone a sua atividade como tradutor de Kafka e estudioso de poetas como Georg Trakl e Paul Celan. Seu estilo protocolar, kafkiano, e as deformações antinaturalistas de seus contos confirmam a epígrafe de Adorno: "Quando mergulhamos em nós mesmos não descobrimos uma personalidade autônoma desvinculada de momentos sociais, mas as marcas do sofrimento do mundo alienado".
Essa coletânea é também a oportunidade de contrastar as curtíssimas narrativas de Carone com seu único livro mais extenso, "Resumo de Ana". A diferença não é meramente formal. Nessa obra de 1998, as trajetórias paralelas de ascensão e miséria de uma empregada doméstica órfã e de seu filho mostravam as repetições da história brasileira, dos desastres que pontuam a narrativa e se estendem da crise de 1929 até o regime militar.
Em "Por Trás dos Vidros", o mundo efetivo também aparece, mas em miniatura e de modo enviesado. No conto "Café das Flores", um litígio verbal (com elementos oníricos) entre dois amantes tem como pano de fundo um confronto entre assaltantes e policiais. Aqui, porém, a violência urbana não passa de "quimera", a face visível de uma destruição capilar que deixa suas marcas no real -e na prosa de Carone.


POR TRÁS DOS VIDROS
Autor:
Modesto Carone
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (208 págs.)
Avaliação: ótimo


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