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CARLOS HEITOR CONY
A camponesa que se tornou rainha
A rigor , nada entendia de
nada. A vida toda fora um
trabalhador braçal alugado por
intelectuais ou por grupos de intelectuais, homens preocupados
com doutrinas, teorias, poemas e
quadros, gente sem tempo para se
dedicar às necessidades da vida
comum. Reuniam-se em cenáculos, grupos, grupelhos, facções,
contrafacções, discutiam nomes e
temas, o acordo entre eles era
nunca chegar a um acordo sobre
nada.
Rubens tomava parte nas reuniões, limitando-se a balançar a
cabeça, negando ou apoiando as
opiniões que o chefe negava ou
apoiava. No meio da discussão,
quando alguém explicava uma
teoria de interpretação de James
Joyce ou comentava o "Coup des
Dés", de Mallarmé, um sujeito se
lembrava:
- Que merda! Esqueci de pagar a conta do gás!
Um outro descobria que estava
sem dinheiro e precisava passar
no escritório de alguém para obter um adiantamento. A maioria
terminava fazendo a lista de pequenas obrigações, e ele, modelo
de homem prático, ativo e dedicado à sua missão, passava o resto
do dia pagando as contas de um,
apanhando o empréstimo do outro, dando recados para um terceiro e trazendo o sanduíche de
salame para um quarto. Quando
regressava, era saudado com alegria. Todos prometiam que um
dia, ao tomarem o poder e instaurarem a Verdadeira República da
Justiça, da Cultura e da Beleza,
Rubens seria o ministro da Fazenda, acumulando suas funções
com a da presidência do Banco
Central.
Se é verdade que nenhum deles
tomou o poder, ninguém persistiu
no duro ofício de poeta e de filósofo. O único que abriu exceção fora
o chefe. Era homem ambicioso e
esperto, conhecia a ambição e a
esperteza dos demais. Logo que
sentiu a sua hora, traiu amigos e
aliou-se a inimigos, que novamente traiu em favor de outros.
Acabou governador de Estado.
Sua única fidelidade foi Rubens: continuou explorando-o como nos velhos tempos, encarregando-o de fazer coisas que ninguém desejava fazer. Mesmo assim, Rubens tomou a investidura
como honra, a maior de sua existência -o que no fundo era verdade. Sua vida tinha sido medíocre, uma sucessão de cargos secundários e burocráticos: assistente de diretores, secretário de
secretários de secretários, arrastou durante 20 anos de vida pública o seu idealismo pelos mais
estranhos e disparatados lugares.
Foi assistente do chefe de uma biblioteca especializada em assuntos econômicos; divulgador do assistente do diretor do Instituto de
Nutrologia; relações-públicas de
uma companhia que explorava a
navegação em portos fluviais; assistente de produção de uma
campanha destinada a recuperar
a lavoura do Piauí; secretário da
Inspetoria dos Dormentes da Madeira-Mamoré; chefe de Subseção
dos Inseticidas de um organismo
federal; membro da Comissão
Executiva pelo Aproveitamento
do Babaçu; vogal de diretoria de
uma empresa paraestatal que explorava o carvão da Alta Mogiana.
Pela primeira vez, recebia um
cargo específico: dirigir um teatro.
Bem sabia que o verdadeiro diretor seria a poderosa engrenagem
política que cercava o governador, mas era necessário que a imprensa, a oposição e o próprio governador tivessem um bode expiatório e oficial à mão.
E ele aceitou a missão com patriotismo e devotamento pessoal
ao seu chefe: demitiu, logo que
pode, todos os desafetos do governador e dos amigos do governador. E, certa noite, quando num
acesso do climatério, o governador telefonou-lhe para que arranjasse "umas meninas" para uma
farrinha oficial -Rubens conseguiu maravilhas: impossibilitado
de arranjar as "meninas" no próprio teatro, foi aos submundos da
praça Tiradentes e de Copacabana, pagou com boa verba a noitada do governador e de seus amigos.
À custa de devotamentos assim,
Rubens mantinha-se no cargo
que poucos cobiçavam e todos exploravam. E, servindo ao governador e a seus principais amigos,
tratou também de servir-se. Era
honesto no trato dos dinheiros
públicos, não roubava nem exigia
comissões dos fornecedores. Mas
sempre que podia, e mesmo
quando não podia, chantageava
as meninas, para si ou para os
amigos. Foi visto de cueca, no corredor dos camarotes, durante
uma encenação de "Gisele" ( o segundo ato é todo passado num cemitério em penumbra). Armara
uma cilada e ali prendera uma
menina que era do coro.
- Você promete que na próxima récita eu vou ser a rainha das
Willis?
- Prometo.
A porta do camarote estava
apenas encostada. Preparavam-se para fornicar, quando, vinda
dos infernos, surgiu a mulher de
Rubens, que era tida, nos meios
oficiais, como uma das amantes
do governador. Ela perdera o primeiro ato, tivera um jantar que se
prolongara, não queria perder o
segundo ato.
Cena de filme pastelão, de vaudeville do século 19, Rubens teve
de fugir. Já havia tirado a calça e
se dispensara de tirar a cueca, que
diabo, tão cedo não teria outra
oportunidade. A menina não tirara nada, estava com a roupa de
camponesa que usara no primeiro ato. Honório, que tomava conta do camarote oficial, viu o diretor sair desembestado em direção
às escadas que davam para o subsolo. No dia seguinte, Rubens foi
demitido a bem do serviço público. Mas a moça conseguiu o papel
da rainha de Willis.
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