São Paulo, sexta-feira, 09 de janeiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A camponesa que se tornou rainha

A rigor , nada entendia de nada. A vida toda fora um trabalhador braçal alugado por intelectuais ou por grupos de intelectuais, homens preocupados com doutrinas, teorias, poemas e quadros, gente sem tempo para se dedicar às necessidades da vida comum. Reuniam-se em cenáculos, grupos, grupelhos, facções, contrafacções, discutiam nomes e temas, o acordo entre eles era nunca chegar a um acordo sobre nada.
Rubens tomava parte nas reuniões, limitando-se a balançar a cabeça, negando ou apoiando as opiniões que o chefe negava ou apoiava. No meio da discussão, quando alguém explicava uma teoria de interpretação de James Joyce ou comentava o "Coup des Dés", de Mallarmé, um sujeito se lembrava:
- Que merda! Esqueci de pagar a conta do gás!
Um outro descobria que estava sem dinheiro e precisava passar no escritório de alguém para obter um adiantamento. A maioria terminava fazendo a lista de pequenas obrigações, e ele, modelo de homem prático, ativo e dedicado à sua missão, passava o resto do dia pagando as contas de um, apanhando o empréstimo do outro, dando recados para um terceiro e trazendo o sanduíche de salame para um quarto. Quando regressava, era saudado com alegria. Todos prometiam que um dia, ao tomarem o poder e instaurarem a Verdadeira República da Justiça, da Cultura e da Beleza, Rubens seria o ministro da Fazenda, acumulando suas funções com a da presidência do Banco Central.
Se é verdade que nenhum deles tomou o poder, ninguém persistiu no duro ofício de poeta e de filósofo. O único que abriu exceção fora o chefe. Era homem ambicioso e esperto, conhecia a ambição e a esperteza dos demais. Logo que sentiu a sua hora, traiu amigos e aliou-se a inimigos, que novamente traiu em favor de outros. Acabou governador de Estado.
Sua única fidelidade foi Rubens: continuou explorando-o como nos velhos tempos, encarregando-o de fazer coisas que ninguém desejava fazer. Mesmo assim, Rubens tomou a investidura como honra, a maior de sua existência -o que no fundo era verdade. Sua vida tinha sido medíocre, uma sucessão de cargos secundários e burocráticos: assistente de diretores, secretário de secretários de secretários, arrastou durante 20 anos de vida pública o seu idealismo pelos mais estranhos e disparatados lugares. Foi assistente do chefe de uma biblioteca especializada em assuntos econômicos; divulgador do assistente do diretor do Instituto de Nutrologia; relações-públicas de uma companhia que explorava a navegação em portos fluviais; assistente de produção de uma campanha destinada a recuperar a lavoura do Piauí; secretário da Inspetoria dos Dormentes da Madeira-Mamoré; chefe de Subseção dos Inseticidas de um organismo federal; membro da Comissão Executiva pelo Aproveitamento do Babaçu; vogal de diretoria de uma empresa paraestatal que explorava o carvão da Alta Mogiana.
Pela primeira vez, recebia um cargo específico: dirigir um teatro. Bem sabia que o verdadeiro diretor seria a poderosa engrenagem política que cercava o governador, mas era necessário que a imprensa, a oposição e o próprio governador tivessem um bode expiatório e oficial à mão.
E ele aceitou a missão com patriotismo e devotamento pessoal ao seu chefe: demitiu, logo que pode, todos os desafetos do governador e dos amigos do governador. E, certa noite, quando num acesso do climatério, o governador telefonou-lhe para que arranjasse "umas meninas" para uma farrinha oficial -Rubens conseguiu maravilhas: impossibilitado de arranjar as "meninas" no próprio teatro, foi aos submundos da praça Tiradentes e de Copacabana, pagou com boa verba a noitada do governador e de seus amigos.
À custa de devotamentos assim, Rubens mantinha-se no cargo que poucos cobiçavam e todos exploravam. E, servindo ao governador e a seus principais amigos, tratou também de servir-se. Era honesto no trato dos dinheiros públicos, não roubava nem exigia comissões dos fornecedores. Mas sempre que podia, e mesmo quando não podia, chantageava as meninas, para si ou para os amigos. Foi visto de cueca, no corredor dos camarotes, durante uma encenação de "Gisele" ( o segundo ato é todo passado num cemitério em penumbra). Armara uma cilada e ali prendera uma menina que era do coro.
- Você promete que na próxima récita eu vou ser a rainha das Willis?
- Prometo.
A porta do camarote estava apenas encostada. Preparavam-se para fornicar, quando, vinda dos infernos, surgiu a mulher de Rubens, que era tida, nos meios oficiais, como uma das amantes do governador. Ela perdera o primeiro ato, tivera um jantar que se prolongara, não queria perder o segundo ato.
Cena de filme pastelão, de vaudeville do século 19, Rubens teve de fugir. Já havia tirado a calça e se dispensara de tirar a cueca, que diabo, tão cedo não teria outra oportunidade. A menina não tirara nada, estava com a roupa de camponesa que usara no primeiro ato. Honório, que tomava conta do camarote oficial, viu o diretor sair desembestado em direção às escadas que davam para o subsolo. No dia seguinte, Rubens foi demitido a bem do serviço público. Mas a moça conseguiu o papel da rainha de Willis.

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