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"Histórias de Cronópios" reinventa o mundo com um olhar lúdico
especial para a Folha
Onde afinal foi
parar a inteligência e o humor da literatura? Pelo menos a
inteligência e o
humor que produziam livros
como "Histórias de Cronópios e de
Famas"?
Diante da reedição desse pequeno volume de textos curtos (contos, parábolas?) de Julio Cortázar,
a vontade é reproduzir parágrafos
inteiros e não escrever mais nenhuma linha de resenha.
Deixar o leitor avaliar por conta
própria o encanto e a graça (porque tudo não é apenas muito divertido, mas também de uma delicadeza absoluta) desse livro de
1962.
Mas seria uma tarefa no mínimo
insana; primeiro, para selecionar
as passagens (por que um e não
outro desses textos extremamente
bem-humorados que às vezes lembram Franz Kafka, outras Jorge
Luis Borges ou até Luis Buñuel?), e
depois, para saber quando parar
(porque também não convém fazer a grosseria de interromper o riso do leitor).
A seleção poderia começar, ao
acaso, pelo trecho em que o narrador trata de sua própria família, reputada, segundo ele mesmo, pelo
recato, a falta de originalidade, o
apuro na escolha dos apelidos e,
sobretudo, o gosto pelos velórios
de circunstância:
"Não vamos por causa do anis,
nem porque seja preciso ir. Já terão
desconfiado: vamos porque não
podemos suportar as formas mais
sutis da hipocrisia. A mais velha de
minhas primas em segundo grau
se encarrega de investigar a natureza do luto, e se for de verdade,
(...) então ficamos em casa e lhes
fazemos companhia de longe (...);
não gostamos de impor insolentemente nossa vida alheia a esse diálogo com a sombra. Mas se da minuciosa investigação de minha prima surgir a suspeita de que num
pátio coberto ou na sala foram armadas as bases da encenação, então a família veste as melhores roupas, espera que o velório esteja no
ponto e vai se apresentando aos
poucos, mas implacavelmente".
Só para de madrugada, depois de
já terem se "revezado em ordem,
embora sem dar a impressão de
nada preparado", e, com os parentes do morto jogados exaustos pelos cantos, poderem se consagrar,
por fim, "donos indiscutíveis do
velório".
˛
"Nonsense" e crítica
Mais que o absurdo e o humor
negro, o que predomina aqui é
uma mistura muito peculiar de
"nonsense" e crítica de costumes
com a inventividade e o efeito renovador de um olhar infantil lançando pela primeira vez sua inocência lúdica sobre o mundo, para
reinventá-lo.
Pode parecer um tanto ascético
falar de "humor puro", mas é isso o
que ele é se comparado à comédia
publicitária tola, óbvia e embrutecida dos exercícios ginasianos que
muitas vezes se fazem passar hoje
por literatura de humor.
Foi-se o tempo em que Beckett
fazia rir. Hoje, grande parte dos leitores não consegue nem ao menos
perceber o humor afiado de Thomas Bernhard. Tomam tudo ao pé
da letra, como desolação e tristeza.
Cortázar faz parte desse mesmo
mundo perdido em que Beckett e
Thomas Bernhard ainda podiam
provocar o riso dos leitores.
Num dos textos de "Histórias de
Cronópios e de Famas", o escritor
imagina um mundo onde todos se
tornaram escribas: "Cada vez mais
os países serão compostos por escribas e por fábricas de papel e de
tinta, os escribas de dia e as máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas". Escribas, e não
escritores.
De fato, fica difícil rir num mundo desses. E, ao mesmo tempo, rir
é a única saída.
(BC)
˛
Livro: Histórias de Cronópios e Famas
Autor: Julio Cortázar
Tradutora: Glória Rodríguez
Lançamento: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 18 (144 págs.)
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