São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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"Histórias de Cronópios" reinventa o mundo com um olhar lúdico

especial para a Folha


Onde afinal foi parar a inteligência e o humor da literatura? Pelo menos a inteligência e o humor que produziam livros como "Histórias de Cronópios e de Famas"?
Diante da reedição desse pequeno volume de textos curtos (contos, parábolas?) de Julio Cortázar, a vontade é reproduzir parágrafos inteiros e não escrever mais nenhuma linha de resenha.
Deixar o leitor avaliar por conta própria o encanto e a graça (porque tudo não é apenas muito divertido, mas também de uma delicadeza absoluta) desse livro de 1962.
Mas seria uma tarefa no mínimo insana; primeiro, para selecionar as passagens (por que um e não outro desses textos extremamente bem-humorados que às vezes lembram Franz Kafka, outras Jorge Luis Borges ou até Luis Buñuel?), e depois, para saber quando parar (porque também não convém fazer a grosseria de interromper o riso do leitor).
A seleção poderia começar, ao acaso, pelo trecho em que o narrador trata de sua própria família, reputada, segundo ele mesmo, pelo recato, a falta de originalidade, o apuro na escolha dos apelidos e, sobretudo, o gosto pelos velórios de circunstância:
"Não vamos por causa do anis, nem porque seja preciso ir. Já terão desconfiado: vamos porque não podemos suportar as formas mais sutis da hipocrisia. A mais velha de minhas primas em segundo grau se encarrega de investigar a natureza do luto, e se for de verdade, (...) então ficamos em casa e lhes fazemos companhia de longe (...); não gostamos de impor insolentemente nossa vida alheia a esse diálogo com a sombra. Mas se da minuciosa investigação de minha prima surgir a suspeita de que num pátio coberto ou na sala foram armadas as bases da encenação, então a família veste as melhores roupas, espera que o velório esteja no ponto e vai se apresentando aos poucos, mas implacavelmente".
Só para de madrugada, depois de já terem se "revezado em ordem, embora sem dar a impressão de nada preparado", e, com os parentes do morto jogados exaustos pelos cantos, poderem se consagrar, por fim, "donos indiscutíveis do velório".
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"Nonsense" e crítica
Mais que o absurdo e o humor negro, o que predomina aqui é uma mistura muito peculiar de "nonsense" e crítica de costumes com a inventividade e o efeito renovador de um olhar infantil lançando pela primeira vez sua inocência lúdica sobre o mundo, para reinventá-lo.
Pode parecer um tanto ascético falar de "humor puro", mas é isso o que ele é se comparado à comédia publicitária tola, óbvia e embrutecida dos exercícios ginasianos que muitas vezes se fazem passar hoje por literatura de humor.
Foi-se o tempo em que Beckett fazia rir. Hoje, grande parte dos leitores não consegue nem ao menos perceber o humor afiado de Thomas Bernhard. Tomam tudo ao pé da letra, como desolação e tristeza. Cortázar faz parte desse mesmo mundo perdido em que Beckett e Thomas Bernhard ainda podiam provocar o riso dos leitores.
Num dos textos de "Histórias de Cronópios e de Famas", o escritor imagina um mundo onde todos se tornaram escribas: "Cada vez mais os países serão compostos por escribas e por fábricas de papel e de tinta, os escribas de dia e as máquinas de noite para imprimir o trabalho dos escribas". Escribas, e não escritores.
De fato, fica difícil rir num mundo desses. E, ao mesmo tempo, rir é a única saída. (BC)
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Livro: Histórias de Cronópios e Famas Autor: Julio Cortázar Tradutora: Glória Rodríguez Lançamento: Civilização Brasileira Quanto: R$ 18 (144 págs.)


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