São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"L'ILE DESERTE ET AUTRES TEXTES"

Volume, organizado por David Lapoujade, reúne ensaios, entrevistas e artigos

Deleuze inédito chega a livrarias francesas

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Chegou nesta semana às livrarias francesas um grosso volume de ensaios, entrevistas e artigos inéditos, raros ou pouco conhecidos, do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995), um pensador cuja influência não pára de crescer. "L'Île Deserte et Autres Textes" (A Ilha Deserta e Outros Textos) forma um conjunto extraordinário, que abarca de 1953 a 1974. Um segundo volume, "Dois Regimes de Loucos", será publicado em 2003.
Há textos surpreendentes, como uma releitura perversa de Rousseau ("Jean-Jacques Rousseau, Precursor de Kafka, de Céline e de Ponge", 62), um elogio a Sartre ("Ele Foi Meu Mestre", 64), uma "Filosofia da Série Negra", sobre a coleção de livros policiais (66), ou ainda uma conversa essencial com Foucault ("Os Intelectuais e o Poder", 72), um ensaio sobre Nietzsche ("Pensamento Nômade", 73), que é uma das figuras mais constantes dos artigos, junto com Kafka e Marx.
O organizador do livro é o filósofo David Lapoujade, professor na Sorbonne, que foi amigo de Deleuze e é um dos principais especialistas na obra do filósofo. Leia trechos de sua entrevista.

Folha - O primeiro texto do livro, o inédito "A Ilha Deserta" é muito bonito, próximo da prosa poética, mas misterioso também. Como lê-lo dentro da filosofia de Deleuze?
David Lapoujade -
Este texto foi uma encomenda para o número especial de uma revista de viagens... Parece-me que, em "A Ilha Deserta", Deleuze esboça já uma variação sobre o tema da diferença, que deverá persegui-lo até "Diferença e Repetição".
A questão que coloca a ilha deserta poderia ser a seguinte: em que uma ilha deserta constitui uma diferença em si mesma?

Folha - Há dois textos surpreendentes no livro: sobre Sartre e Rousseau, figuras pouco presentes na filosofia deleuzeana. Por que esses filósofos são apenas fulgurações no percurso de Deleuze?
Lapoujade -
Você tem razão em dizer que Sartre e Rousseau são pouco presentes em Deleuze. Sem dúvida, Deleuze não era atraído senão pela perversidade de Rousseau, toda a profunda crueldade que anima subterraneamente o discurso virtuoso da "Nova Heloísa". O resto, a saber, o edifício de seu pensamento político fundado sobre um contrato republicano, deixava Deleuze indiferente. Mas o breve artigo de Deleuze sobre Rousseau deveria ser prolongado. Seria preciso demonstrar como Rousseau perverteu sua obra política por intermédio de sua obra literária, extrai a crueldade do contrato...
Com Sartre, o problema é um pouco diferente. Deleuze admirava muito Sartre porque ele liberava a filosofia de seu fechamento acadêmico. Mesmo a fenomenologia se tornava um pouco viva nos seus escritos. Seus textos sobre literatura, sobre a atualidade, seus engajamentos políticos criavam uma "corrente de ar". Enfim, a filosofia saía da Sorbonne...

Folha - A vulgarização do pensamento deleuzeano está em processo. Nas revistas de arte e nos sites de vanguarda da internet, artistas e críticos falam de "velocidades", "pensamento nômade" etc. Por outro lado, não se vê falar muito da política de Deleuze-Guattari junto à esquerda antimundialista, que trata as coisas muito mais na ótica de Guy Debord. Como explicar essa fascinação exercida por Deleuze junto aos criadores e que não é correspondida da parte dos ativistas políticos?
Lapoujade -
Você compreende que não posso responder por eles. Seria interessante perguntar: por que Debord? O que choca, contudo, é que o novo tipo de luta dos movimentos antimundialização -porque é muito novo- não está afastado do que Deleuze e Guattari pensaram sob o termo de "rizoma", um sistema de rede acentradas, fora de todo sistema de representação, funcionando de modo ao mesmo tempo local e global. De outro lado, o caráter fundamentalmente pragmático das análises e das ações dos "antimundialistas" parece muito próximo também daquilo que Deleuze e Guattari indicam, sobretudo quando eles procuram as "linhas de fuga" de um sistema dado. Estou espantado com aquilo que você me diz de Debord e de sua influência. Seu pensamento é antes de tudo o de um paranóico: o sistema já venceu sempre o que se opõe a ele, já recuperou e integrou sempre aquilo que o contesta. De onde a idéia de que a luta deve ser levada sobre um fundo de derrota primordial. Luta-se, claro, mas com a idéia de que, de todo modo, o combate estará perdido antes, daí uma ironia que se queria "subversiva" com muito de melancolia. Mas quem não vê que aquilo com que sonha todo o sistema é triunfar por antecipação sobre toda luta, toda oposição? Que ele sonha se tornar mais real na vida das pessoas do que o próprio poder de resistência ou os próprios desejos delas? Nós não vivemos numa sociedade do espetáculo, mas numa sociedade real, onde as ações são reais, nas almas e nos corpos. O pragmatismo dos antimundialistas me parece ir num sentido bem oposto às teses de Debord.

Folha - Se fosse possível escolher a questão principal, o desafio, que Deleuze coloca a nossa época, qual seria?
Lapoujade -
Não é preciso muito trabalho hoje, com o fascismo que nos impõe a América de Bush, para responder a essa questão. Talvez o mais urgente em filosofia seja tentar fazer da América um objeto filosófico, criar uma espécie de objeto filosófico monstruoso que nos daria pontos de apoio para escapar dele, para saber como resistir e fugir dos modos de vida que nos são impostos. Mas há questões possíveis levantadas por Deleuze e Guattari...


L'ÎLE DESERTE ET AUTRES TEXTES
Autor: David Lapoujade (org.).
Editora: De Minuit.
Quanto: R$ 108 (apenas por encomenda, na livraria Francesa, tel. 0/ xx/11/231-4555; 416 págs.).


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