São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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Gioconda Belli quer "recosturar" ligação entre política e literatura

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"A esquerda vive um complexo de culpa com relação ao romantismo e à utopia", diz a nicaraguense Gioconda Belli, 53. Idealista, a escritora vê com preocupação o pragmatismo dominar o debate político e acha que a literatura deve resgatar seu papel público.
Belli esteve no Brasil na última semana para participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e lançar sua autobiografia, "O País sob Minha Pele", pela Record.
Premiada com o prestigiado Casa de las Americas (por "Linea de Fuego", em 1978), a autora foi também militante da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), que derrubou a ditadura Somoza na Nicarágua, em 1979. Leia os principais trechos da entrevista que a escritora nicaraguense concedeu à Folha.

Folha - A literatura latino-americana do século 20 envolveu-se bastante com a militância política. Você se filia a essa tendência. Acha que isso está mudando?
Gioconda Belli -
O que estamos vendo é uma busca do individual como tema literário. Não acho mau que se revalorize isso. É uma resposta a um pensamento consensual que nos mandava considerar que "individualismo" era uma má palavra, um desvio "pequeno-burguês". Estamos passando por uma transição para um pensamento que sintetiza as experiências do passado. Não acredito que a literatura deixará de ser política. Só penso que será menos panfletária, mais consciente das relações entre pessoal e público.

Folha - Por que decidiu escrever suas memórias?
Belli -
Para reivindicar a importância do romantismo na literatura e na política, a importância de sonhar com coisas impossíveis. Me sentia farta do "mea-culpa" tão repetido nos últimos anos, dessa tendência de muitos de renegar tudo quanto foram e fizeram. Me sinto privilegiada por ter vivido a revolução. O livro é a história da minha participação, não como historiadora, mas como alguém que, enquanto atuava, teve filhos, dúvidas e se apaixonou.

Folha - A revolução sandinista se transformou num importante símbolo para a esquerda latino-americana no século passado. Acha que esse símbolo ainda é referência ou virou uma caricatura?
Belli -
Sim, primeiro foi Daniel Ortega que se transformou em uma caricatura de si mesmo. Depois, isso aconteceu com o próprio legado da revolução. Mas creio que até os setores mais anti-sandinistas da Nicarágua atualmente admitem que o sandinismo possibilitou a refundação de um país, por meio dos processos eleitorais. Hoje a sociedade civil é organizada e o governo reconhece sua representatividade. A revolução transcendeu à Frente Sandinista que, como partido, ficou estancado, com um dirigente caudilho que negou ao sandinismo a possibilidade de evoluir.

Folha - Acha que o discurso tradicional da esquerda está obsoleto?
Belli -
A esquerda vive um complexo de culpa com relação ao romantismo e à utopia. É uma lástima, porque o que ela sempre teve de mais valioso foi o idealismo, a capacidade de sonhar grandes sonhos, de ser romântica e literária. Hoje existe uma luta na esquerda para encontrar coerência entre discurso e prática. Infelizmente, aos poucos se caiu no pragmatismo e hoje se acredita que é preciso abandonar o discurso idealista.


O PAÍS SOB MINHA PELE- El País bajo Mi Piel.
Autora: Gioconda Belli.
Tradução: Ana Carla Lacerda.
Editora: Record, 2002.
Quanto: R$ 38 (378 págs.).


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