São Paulo, quarta-feira, 09 de fevereiro de 2005

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MARCELO COELHO

O dia em que deuses e reis entram no túnel

Felizmente , dá para escapar da mesmice das imagens que nos invadem nesta época do ano: aqueles sorrisos imutáveis dos destaques das escolas de samba, tentando equilibrar na cabeça enfeites que imagino pesadíssimos, tal o esforço do pescoço; os enjoativos cortejos que, vistos na tela da TV, parecem estranhamente estáticos e confusos, como a vitrine de uma loja de miçangas; a figura do repórter na rua, de fones de ouvido, berrando para a câmera, sem ouvir nada e sem ter nada a dizer... Visões diferentes do Carnaval podem ser encontradas na Pinacoteca do Estado, até dia 10 de abril.
"Entrudo", exposição de Rui Mendes, mostra um desfile inusitado, ao mesmo tempo triunfal e triste. O fotógrafo retratou os sambistas voltando para casa, depois da apresentação no Sambódromo do Rio, ainda cobertos com as fantasias e adereços dourados, lembrando esplendores de deuses mexicanos no escuro. Até aí, nada de especial: é também um lugar-comum da fotografia carnavalesca a idéia do fim da folia, no estilo "eis o primeiro gari que se encontra com a última passista no raiar da madrugada..." etc.
A novidade, a surpresa, está no lugar em que a foto foi tirada: o túnel Frei Caneca, deserto àquela hora da noite. Três ou quatro carnavalescos, a razoável distância um do outro, andam na estreita passagem reservada aos pedestres dentro do túnel, a caminho (imagino) do subúrbio. Várias coisas se concentram nessa imagem.
De um lado, fortalece-se um pouco o sentido, digamos, subversivo do Carnaval. Ao contrário do desfile no Sambódromo, que em última instância consiste num evento oficializado, com hora marcada, regulamento e endereço fixo, o que surge na foto é a ocupação imprevista de um espaço não-autorizado, fazendo do Carnaval aquilo que ele deve de fato ser: algo capaz de transfigurar o cotidiano, dissolvendo referências fixas. O lugar -feiíssimo, coberto de sujeira e pichações- adquire na foto o ar de uma nova passarela, e o corrimão reservado aos pedestres se ilumina de tons dourados também.
Só que os carnavalescos estão longe de ser tão "transgressivos" assim, e o sentido da foto se inverte: afinal de contas, eles se confinam ao espaço dos pedestres, sem invadir a pista dos automóveis. Não há símbolo mais claro da dificuldade enfrentada pelos pedestres em cidades como Rio e São Paulo, aliás, do que esses condutos, estreitos como uretras, por que são às vezes obrigados a percorrer.
O que Rui Mendes retrata, afinal, é uma volta à casa, não uma comemoração dionisíaca; como se tudo tivesse sido mais um dia de trabalho -ainda que bastante diferente dos habituais. Uma descida aos infernos, talvez? Podemos imaginar que os reis e deuses do desfile retornam à obscuridade -mas nesse retorno, pelo menos, ainda sacralizam os lugares por onde passam.
O título da exposição de Rui Mendes, "Entrudo", tem algo de quase trocadilhesco, sugerindo "entrar" e "túnel", além de remeter, pelo uso da sua denominação antiga, aos tempos em que o Carnaval era mesmo mais tumultuado e inconformista. A etimologia de "entrudo", em todo caso, explica mais um pouco a foto: a palavra vem de "intróito", introdução, entrada, referindo-se ao começo da Quaresma, período de penitência e luto depois das festas.
Com "Giracorpogira", também na Pinacoteca, o fotógrafo Jacques Faing faz uma interpretação bem mais leve, quase que desmaterializada, e até "desumanizada", do Carnaval. Não há rostos nem aglomerações frenéticas. Faing concentrou-se nas saias das baianas e porta-bandeiras, girando acima do chão. Dito assim, parece muito prosaico, mas o efeito é de extrema delicadeza; somos tentados a nos aproximar bastante das fotografias para verificar se o autor não acrescentou nenhuma pincelada para embelezar ainda mais o que as lentes registraram. Todos conhecem aquelas fotos de avenidas à noite, em que os faróis dos carros acabam parecendo, graças à superexposição da câmera, fios brilhantes, amarelos, brancos e vermelhos, contrastando com o asfalto. Imagino que Jacques Faing tenha utilizado um processo semelhante. As saias das sambistas se esfiapam, se desgrenham, se dissolvem, com o ouro dos bordados sobre o tecido azul-claro, branco ou verde-e-rosa, transformado num fluxo de luz.
A impressão que tenho do Carnaval como espetáculo exasperado, no fundo meio doloroso e paquidérmico, desapareceu graças às fotos de Faing; tudo se tornava suave como um pastel de Degas ou Fragonard. De certo modo, também nessa exposição se atingia aquilo que o Carnaval quer, mas não consegue realizar totalmente: uma transfiguração da realidade, em que um processo de encantamento ritual, giratório, fizesse tudo voar pelos ares, sem explosão, mas num milagre de leveza. Foi só sair da Pinacoteca, entretanto, para que no Jardim da Luz -tão bonito, apesar de tudo- uma população tristíssima, paupérrima, sem Carnaval nem fotógrafo que resolva, se fizesse visível no seu lugar de sempre.


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