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COMENTÁRIO
Jardim periferia
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Cidade é sintaxe.
De propósito resolvi abolir o conectivo "e": jardim e periferia.
Prefiro o título direto: jardim periferia. Relação simbiótica e perversa. Uma coisa está na outra,
tanto o realismo quanto a verossimilhança. A miséria e a riqueza
juntas, juntas e burras na máxima
privatização da felicidade, onde
tudo é indiferenciado de modo
sadomasoquista entre o café e o
crack.
Quando leio na imprensa sobre
o binômio Morumbi-Capão Redondo (nas entrelinhas querendo
dizer a impossível felicidade da
elite e da ralé), tenho a impressão
de que perdura misteriosamente
o cromossomo da casa grande e
senzala em ritmo rap, tal qual a videoguerra do Golfo, embora o código genético posto em evidência
por Gilberto Freyre se traduza hoje em total e absurda irracionalidade da violência, espécie de câncer social atingindo as células pivetes e jovens, variando apenas a
morfologia do que é a vida blindada do rico com suas redes de controle. O fato é que, nesta feitoria
industrializada, o de comer é pior
do que quando havia senhor e escravo.
Lembro-me de um amigo meu
dizendo sobre a crivagem sociológica de São Paulo entre o jardim
nova-iorquino e a periferia californiana. Essa ironia cruel é um
jeito elíptico de afastar a idéia de
que o lixo de Capão Redondo
possa vir a ser um novo Canudos
suburbano.
O método da retrospecção temporal não é atualmente nostalgia
reacionária ou regressiva. Na janela do Carandiru medra a saudade da diamba diante da barra pesada de pobre matando pobre por
qualquer mixaria. O crime da
droga barata faz parte do clima de
invasão de terreno. Um morando
em cima do outro, com um boteco ao lado e as mães chorando,
em frente da televisão, o filho assassinado.
São Paulo Calcutá. Gente morrendo na rua sem arquitetura de
morar. A cultura da morte tomou
conta do cotidiano, onde não
existe mais o consolo estético da
antiga favela cantada em versos e
sambas exaltando o morro como
laboratório linguístico.
Se fosse guerra civil ideológica,
o jornalista Paulo Francis não teria escrito o livro "Cabeça de Negro", misturando, do ponto de
vista psicológico, o fascínio e o pavor da horda.
Por outro lado, é difícil afirmar
que seja um Vietnã sem mato,
porque nem é o rock na orelha do
soldado norte-americano o que
motiva o gesto da bandidagem,
assim como a Bíblia não segura a
metástase da violência sem rumo.
Nesse baile da bala perdida, o
grau da despolitização permanece no meio lúmpen cada vez mais
desempregado pelos pacotes tecnológicos da tela quente.
O escritor Euclides da Cunha,
militar de formação, falava em
"mendigos fartos". O mesmo círculo vicioso do povo capado e recapado, a que se referia com
amargura o grande historiador
Capistrano de Abreu.
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