São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2000


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COMENTÁRIO
Jardim periferia

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Cidade é sintaxe.
De propósito resolvi abolir o conectivo "e": jardim e periferia. Prefiro o título direto: jardim periferia. Relação simbiótica e perversa. Uma coisa está na outra, tanto o realismo quanto a verossimilhança. A miséria e a riqueza juntas, juntas e burras na máxima privatização da felicidade, onde tudo é indiferenciado de modo sadomasoquista entre o café e o crack.
Quando leio na imprensa sobre o binômio Morumbi-Capão Redondo (nas entrelinhas querendo dizer a impossível felicidade da elite e da ralé), tenho a impressão de que perdura misteriosamente o cromossomo da casa grande e senzala em ritmo rap, tal qual a videoguerra do Golfo, embora o código genético posto em evidência por Gilberto Freyre se traduza hoje em total e absurda irracionalidade da violência, espécie de câncer social atingindo as células pivetes e jovens, variando apenas a morfologia do que é a vida blindada do rico com suas redes de controle. O fato é que, nesta feitoria industrializada, o de comer é pior do que quando havia senhor e escravo.
Lembro-me de um amigo meu dizendo sobre a crivagem sociológica de São Paulo entre o jardim nova-iorquino e a periferia californiana. Essa ironia cruel é um jeito elíptico de afastar a idéia de que o lixo de Capão Redondo possa vir a ser um novo Canudos suburbano.
O método da retrospecção temporal não é atualmente nostalgia reacionária ou regressiva. Na janela do Carandiru medra a saudade da diamba diante da barra pesada de pobre matando pobre por qualquer mixaria. O crime da droga barata faz parte do clima de invasão de terreno. Um morando em cima do outro, com um boteco ao lado e as mães chorando, em frente da televisão, o filho assassinado.
São Paulo Calcutá. Gente morrendo na rua sem arquitetura de morar. A cultura da morte tomou conta do cotidiano, onde não existe mais o consolo estético da antiga favela cantada em versos e sambas exaltando o morro como laboratório linguístico.
Se fosse guerra civil ideológica, o jornalista Paulo Francis não teria escrito o livro "Cabeça de Negro", misturando, do ponto de vista psicológico, o fascínio e o pavor da horda.
Por outro lado, é difícil afirmar que seja um Vietnã sem mato, porque nem é o rock na orelha do soldado norte-americano o que motiva o gesto da bandidagem, assim como a Bíblia não segura a metástase da violência sem rumo.
Nesse baile da bala perdida, o grau da despolitização permanece no meio lúmpen cada vez mais desempregado pelos pacotes tecnológicos da tela quente.
O escritor Euclides da Cunha, militar de formação, falava em "mendigos fartos". O mesmo círculo vicioso do povo capado e recapado, a que se referia com amargura o grande historiador Capistrano de Abreu.


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