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DOCUMENTÁRIO - CAPÃO REDONDO
Penetrando no universo paralelo
especial para a Folha
"Você acredita em Deus?", é a
pergunta que mais escutei na visita ao Capão Redondo, para acompanhar as filmagens do documentário "Universo Paralelo".
"Contraditoriamente, os envolvidos no crime e a polícia são extremamente religiosos. Tem um
ditado entre os policiais. Eles, depois de matarem um assaltante,
afirmam que só furam, e que
quem mata é Deus", diz Cobra,
rapper da Conexão do Morro.
"O que mais prolifera por aqui
são igrejas", conta Ferréz, autor
do livro ainda inédito "Capão Pecado".
A Igreja usa o termo "desassistidos". A velha sociologia falava do
"lúmpen". Eles, do Capão, preferem o termo "gueto". E o bairro
lembra, de fato, um gueto.
Para se chegar lá, existe apenas
uma avenida principal (estrada
de Itapecerica), esburacada e congestionada. Quase não há transporte público. É o paraíso da lotação clandestina; muitos dos outdoors da avenida anunciam vans.
É uma terra árida, quase sem
dono: uma favela urbanizada. Em
muitas esquinas, existem salões
de beleza "penteado black". No
centrinho do bairro, um Landau
rosa, com teto branco, estacionado, destaca-se de uma frota de
Kombis e carros com mais de vinte anos de uso. "É o carro do Mano Brown", disse um garoto que
não quis ser identificado.
Mano Brown, dos Racionais
MC's, é uma espécie de referência,
no bairro. É o herói que ofereceu
o rap como força de expressão.
Lá, distingue-se bem quem é do
movimento rap. Eles lêem livros
como "Cidade de Deus" (de Paulo
Lins) e "Estação Carandiru" (de
Dráuzio Varela), que são passados de mão em mão, e têm na
ponta-da-língua a expressão "auto-estima baixa" para definir uma
das doenças a ser curadas.
Cobra e Ferréz conduzem a
equipe de filmagem do documentário e indicam as pessoas a ser
entrevistadas. Uma das fontes do
dia havia desaparecido. Era um
garoto envolvido com o roubo de
motos. Três sujeitos "trepados"
(armados) foram vistos procurando o garoto, na noite anterior.
Ninguém explica o que pode ter
acontecido com o garoto. Mas a
intensa movimentação da noite
anterior sugere: a essa altura, ele
já foi eliminado.
"Ontem à noite estava quente
por aqui. Muito tiro. O carro do
IML recolheu, hoje de manhã, alguns corpos", afirma E., que não
pode ter seu nome revelado.
Muitos cachorros vira-latas fazem a guarda de casas e barracos.
A equipe montou seu equipamento num bar-de-garagem. Os
entrevistados, indicados por Ferréz, foram chegando. Estão arrumados. A menina passou batom.
"Pro pessoal, é novidade, tá ligado?", diz Ferréz.
Estão tímidos. Pouco a pouco,
contam suas histórias. A menina
era de uma família em que a
maioria estava envolvida com o
crime. Um irmão seu foi assassinado há poucos dias.
O dono do bar conta como ficou
paraplégico. Roubou um carro,
foi perseguido pela polícia, bateu
de frente com um ônibus, estourou a cara. Grogue, ainda, viu o
policial se aproximar e dar-lhe
um tiro na cintura.
"Tinha um policial que acertava
na cintura dos assaltantes, só para
eles ficarem paraplégicos. Depois,
esse policial foi preso porque assaltou um banco. É uma realidade
complexa", afirma Teresa Eça.
Dez anos antes, o Capão Redondo era um mato só. O caminhão
de gás aparecia com correntes nos
pneus. Havia muitos campos de
várzea. Foi o Estado e a Prefeitura
que acabaram com as poucas praças, em que construíram conjuntos habitacionais, segundo informaram as fontes.
Mas o documentário não corre
o risco de cultuar a vida de criminosos, criar falsos ídolos, incentivar a opção pelo crime?
"Já fui assaltada com revólver
na cabeça e odiei. Tentamos humanizar os criminosos e entendê-los. Tem ladrão que se deprime.
Um dos que entrevistamos disse
que o pior crime é pegar um dinheiro que não é seu. Ele disse que
quando chega em casa, depois de
um roubo, deita no sofá e chora.
Isto está gravado", conta Teresa
Eça.
"Esse tipo de gente não se considera um assaltante, mas administrador do dinheiro dos outros.
Eles dizem que o colarinho-branco tem a arma do estudo, e eles a
arma do revólver", completa Cobra.
(MARCELO RUBENS PAIVA)
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