São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2000


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DOCUMENTÁRIO - CAPÃO REDONDO
Penetrando no universo paralelo

especial para a Folha

"Você acredita em Deus?", é a pergunta que mais escutei na visita ao Capão Redondo, para acompanhar as filmagens do documentário "Universo Paralelo".
"Contraditoriamente, os envolvidos no crime e a polícia são extremamente religiosos. Tem um ditado entre os policiais. Eles, depois de matarem um assaltante, afirmam que só furam, e que quem mata é Deus", diz Cobra, rapper da Conexão do Morro.
"O que mais prolifera por aqui são igrejas", conta Ferréz, autor do livro ainda inédito "Capão Pecado".
A Igreja usa o termo "desassistidos". A velha sociologia falava do "lúmpen". Eles, do Capão, preferem o termo "gueto". E o bairro lembra, de fato, um gueto.
Para se chegar lá, existe apenas uma avenida principal (estrada de Itapecerica), esburacada e congestionada. Quase não há transporte público. É o paraíso da lotação clandestina; muitos dos outdoors da avenida anunciam vans.
É uma terra árida, quase sem dono: uma favela urbanizada. Em muitas esquinas, existem salões de beleza "penteado black". No centrinho do bairro, um Landau rosa, com teto branco, estacionado, destaca-se de uma frota de Kombis e carros com mais de vinte anos de uso. "É o carro do Mano Brown", disse um garoto que não quis ser identificado.
Mano Brown, dos Racionais MC's, é uma espécie de referência, no bairro. É o herói que ofereceu o rap como força de expressão. Lá, distingue-se bem quem é do movimento rap. Eles lêem livros como "Cidade de Deus" (de Paulo Lins) e "Estação Carandiru" (de Dráuzio Varela), que são passados de mão em mão, e têm na ponta-da-língua a expressão "auto-estima baixa" para definir uma das doenças a ser curadas.
Cobra e Ferréz conduzem a equipe de filmagem do documentário e indicam as pessoas a ser entrevistadas. Uma das fontes do dia havia desaparecido. Era um garoto envolvido com o roubo de motos. Três sujeitos "trepados" (armados) foram vistos procurando o garoto, na noite anterior.
Ninguém explica o que pode ter acontecido com o garoto. Mas a intensa movimentação da noite anterior sugere: a essa altura, ele já foi eliminado.
"Ontem à noite estava quente por aqui. Muito tiro. O carro do IML recolheu, hoje de manhã, alguns corpos", afirma E., que não pode ter seu nome revelado.
Muitos cachorros vira-latas fazem a guarda de casas e barracos. A equipe montou seu equipamento num bar-de-garagem. Os entrevistados, indicados por Ferréz, foram chegando. Estão arrumados. A menina passou batom. "Pro pessoal, é novidade, tá ligado?", diz Ferréz.
Estão tímidos. Pouco a pouco, contam suas histórias. A menina era de uma família em que a maioria estava envolvida com o crime. Um irmão seu foi assassinado há poucos dias.
O dono do bar conta como ficou paraplégico. Roubou um carro, foi perseguido pela polícia, bateu de frente com um ônibus, estourou a cara. Grogue, ainda, viu o policial se aproximar e dar-lhe um tiro na cintura.
"Tinha um policial que acertava na cintura dos assaltantes, só para eles ficarem paraplégicos. Depois, esse policial foi preso porque assaltou um banco. É uma realidade complexa", afirma Teresa Eça.
Dez anos antes, o Capão Redondo era um mato só. O caminhão de gás aparecia com correntes nos pneus. Havia muitos campos de várzea. Foi o Estado e a Prefeitura que acabaram com as poucas praças, em que construíram conjuntos habitacionais, segundo informaram as fontes.
Mas o documentário não corre o risco de cultuar a vida de criminosos, criar falsos ídolos, incentivar a opção pelo crime?
"Já fui assaltada com revólver na cabeça e odiei. Tentamos humanizar os criminosos e entendê-los. Tem ladrão que se deprime. Um dos que entrevistamos disse que o pior crime é pegar um dinheiro que não é seu. Ele disse que quando chega em casa, depois de um roubo, deita no sofá e chora. Isto está gravado", conta Teresa Eça.
"Esse tipo de gente não se considera um assaltante, mas administrador do dinheiro dos outros. Eles dizem que o colarinho-branco tem a arma do estudo, e eles a arma do revólver", completa Cobra. (MARCELO RUBENS PAIVA)



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