São Paulo, sexta-feira, 09 de março de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Machado e o largo do Machado cem anos depois

Acontece com os outros e aconteceu comigo. Não cheguei a ser despejado de minha sala, que na realidade era um latifúndio imobiliário que fora usado, em épocas diferentes, pelo dr. Albert Sabin e por Juscelino Kubitschek. Por generosidade de Adolpho Bloch, herdei um escritório onde, durante sete anos, trabalhei com o ex-presidente, ajudando-o a editar seus livros de memórias.
Morreu JK, morreu Adolpho, eu não morri, mas a empresa em que eu trabalhava teve a morte cerebral da falência, existindo agora em forma vegetal de massa falida. E um reles papel, com timbre de uma das varas da comarca em que habito, lacrou o prédio todo, a sala inclusive.
Tive de procurar onde repousar meus ossos e arquivos, resíduos de mais de 30 anos de ofício. Aconselharam-me a Barra, lugar da moda, que segundo os entendidos é uma Miami sem necessidade de visto da embaixada americana. Insistiram também em Ipanema, pegaria o charme já meio debilitado do bairro. Recusei a Lagoa por que é onde moro e seria um pleonasmo morar e trabalhar diante da mesma paisagem, que, por sinal, é uma das mais bonitas da cidade, do país e do mundo.
Por diversos motivos, urbanos e sentimentais, fixei-me no largo do Machado, ao pé da rua Machado de Assis. Aliás, o largo tem este nome por causa de um machado enorme que um português, dono de um açougue local, mandou colocar para indicar que ali se vendia carne. Foi um dos primeiros ícones da cidade. O freguês olhava o machado e, não sei por que, se lembrava de comprar carne.
Aparentemente, o negócio funcionava, pois o lugar passou a se chamar largo do Machado, apesar de seu nome oficial ser largo de Nossa Senhora da Glória e, mais tarde, praça Duque de Caxias.
E era Duque de Caxias, ao tempo de seu morador mais ilustre, que a ele se referia como largo do Machado, sabendo que nada tinha a ver nem com o largo nem com o machado do largo.
Aliás, é o trecho mais machadiano do Rio. Ele morou pelas redondezas, melhorando de endereço à medida que melhorava de estilo. Morou na rua do Catete e depois na rua das Laranjeiras, as duas ruas que formam a praça em si.
Já famoso, presidente da Academia Brasileira de Letras, subiu pelo leito do rio Carioca que a prefeitura havia canalizado e foi morar no Cosme Velho, que é o prolongamento aristocrático da rua das Laranjeiras.
Como disse, minha nova sala se debruça sobre a rua Machado de Assis e faz esquina com os endereços principais do "Bruxo", que passou a maior parte de sua vida por aqui mesmo. Todos os dias, agora, passo pelos locais onde ele morou e, se decido voltar para a lagoa usando o caminho da praia, vou dar exatamente naquele trecho onde Escobar, depois de sofrer a ressaca dos olhos de Capitu, foi morrer afogado na ressaca daquela manhã em que começaram a desgraça e a dúvida (mais dúvida do que desgraça) do Dom Casmurro.
O largo deve estar bem diferente do antigo, que tinha fumos fidalgos, como, aliás, o próprio Machado atribuiu ao Bentinho em seu romance mais famoso. Hoje é um largo plebeu, com enorme estação de metrô, uma babel de camelôs e restaurantes que vendem comida a quilo. Ali funcionou o café Lamas e o cinema São Luiz, o mais luxuoso da cidade, que foi demolido exatamente para a construção do prédio onde fica a minha sala.
Mas a igreja, ao fundo do largo, é a mesma do tempo de Machado. Certamente a igreja mais feia, ou pelo menos a mais estranha, desde que os primeiros cristãos abandonaram as catacumbas romanas.
Com a palavra, o mestre: ""Domingo passado, saí à praça Duque de Caxias (vulgarmente largo do Machado) e comecei a passear defronte da igreja matriz da Glória. Quem não conhece este templo grego, imitado da Madalena, com uma torre, imitada de coisa nenhuma? A impressão que se tem, diante daquele singular conúbio, não é cristã nem pagã; faz lembrar, como na comédia, o casamento do Grão-Turco com a República de Veneza. Quando ali passo, desvio sempre os olhos e o pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes, contra a torre e contra o templo, mandando-os ambos ao diabo..."
A crônica de Machado é de 1892. Cem anos depois, mais do que isso, 109 anos para ser exato, passo eu todos os dias pelo mesmo conúbio arquitetônico, também desvio o olhar e o pensamento. Só não desvio os meus passos porque preciso chegar ao pé do antigo cinema São Luiz, onde, em tempos idos, amassei namoradas de outros tempos e fui amassado por elas. E sempre é bom citar o poeta Villon, ""mais où sont les neiges d"antan?". Onde estão?
Eu, pelo menos, estou ali. É força de expressão dizer que estou ali. Quem ali está é o que sobrou de mim, que deixei pedaços espalhados pela cidade, ao pé da qual nasci, vivi e espero de morrer, se Deus quiser, embora torcendo para que ele não queira já. (Insisto neste ""ao pé" porque é tão machadiano quanto o próprio largo do Machado.)
Mas, enquanto puder, vou levando. Como disse no início, essas coisas acontecem. Mudei de sala. Piorei de vida e não melhorei de estilo.



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