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CARLOS HEITOR CONY
Machado e o largo do Machado cem anos depois
Acontece com os outros e
aconteceu comigo. Não cheguei a ser despejado de minha sala, que na realidade era um latifúndio imobiliário que fora usado, em épocas diferentes, pelo dr.
Albert Sabin e por Juscelino Kubitschek. Por generosidade de
Adolpho Bloch, herdei um escritório onde, durante sete anos, trabalhei com o ex-presidente, ajudando-o a editar seus livros de
memórias.
Morreu JK, morreu Adolpho, eu
não morri, mas a empresa em que
eu trabalhava teve a morte cerebral da falência, existindo agora
em forma vegetal de massa falida.
E um reles papel, com timbre de
uma das varas da comarca em
que habito, lacrou o prédio todo,
a sala inclusive.
Tive de procurar onde repousar
meus ossos e arquivos, resíduos de
mais de 30 anos de ofício. Aconselharam-me a Barra, lugar da moda, que segundo os entendidos é
uma Miami sem necessidade de
visto da embaixada americana.
Insistiram também em Ipanema,
pegaria o charme já meio debilitado do bairro. Recusei a Lagoa
por que é onde moro e seria um
pleonasmo morar e trabalhar
diante da mesma paisagem, que,
por sinal, é uma das mais bonitas
da cidade, do país e do mundo.
Por diversos motivos, urbanos e
sentimentais, fixei-me no largo
do Machado, ao pé da rua Machado de Assis. Aliás, o largo tem
este nome por causa de um machado enorme que um português,
dono de um açougue local, mandou colocar para indicar que ali
se vendia carne. Foi um dos primeiros ícones da cidade. O freguês olhava o machado e, não sei
por que, se lembrava de comprar
carne.
Aparentemente, o negócio funcionava, pois o lugar passou a se
chamar largo do Machado, apesar de seu nome oficial ser largo
de Nossa Senhora da Glória e,
mais tarde, praça Duque de Caxias.
E era Duque de Caxias, ao tempo de seu morador mais ilustre,
que a ele se referia como largo do
Machado, sabendo que nada tinha a ver nem com o largo nem
com o machado do largo.
Aliás, é o trecho mais machadiano do Rio. Ele morou pelas redondezas, melhorando de endereço à medida que melhorava de
estilo. Morou na rua do Catete e
depois na rua das Laranjeiras, as
duas ruas que formam a praça
em si.
Já famoso, presidente da Academia Brasileira de Letras, subiu
pelo leito do rio Carioca que a
prefeitura havia canalizado e foi
morar no Cosme Velho, que é o
prolongamento aristocrático da
rua das Laranjeiras.
Como disse, minha nova sala se
debruça sobre a rua Machado de
Assis e faz esquina com os endereços principais do "Bruxo", que
passou a maior parte de sua vida
por aqui mesmo. Todos os dias,
agora, passo pelos locais onde ele
morou e, se decido voltar para a
lagoa usando o caminho da
praia, vou dar exatamente naquele trecho onde Escobar, depois
de sofrer a ressaca dos olhos de
Capitu, foi morrer afogado na
ressaca daquela manhã em que
começaram a desgraça e a dúvida
(mais dúvida do que desgraça) do
Dom Casmurro.
O largo deve estar bem diferente
do antigo, que tinha fumos fidalgos, como, aliás, o próprio Machado atribuiu ao Bentinho em
seu romance mais famoso. Hoje é
um largo plebeu, com enorme estação de metrô, uma babel de camelôs e restaurantes que vendem
comida a quilo. Ali funcionou o
café Lamas e o cinema São Luiz, o
mais luxuoso da cidade, que foi
demolido exatamente para a
construção do prédio onde fica a
minha sala.
Mas a igreja, ao fundo do largo,
é a mesma do tempo de Machado.
Certamente a igreja mais feia, ou
pelo menos a mais estranha, desde que os primeiros cristãos abandonaram as catacumbas romanas.
Com a palavra, o mestre: ""Domingo passado, saí à praça Duque de Caxias (vulgarmente largo
do Machado) e comecei a passear
defronte da igreja matriz da Glória. Quem não conhece este templo grego, imitado da Madalena,
com uma torre, imitada de coisa
nenhuma? A impressão que se
tem, diante daquele singular conúbio, não é cristã nem pagã; faz
lembrar, como na comédia, o casamento do Grão-Turco com a
República de Veneza. Quando ali
passo, desvio sempre os olhos e o
pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes, contra a torre e
contra o templo, mandando-os
ambos ao diabo..."
A crônica de Machado é de
1892. Cem anos depois, mais do
que isso, 109 anos para ser exato,
passo eu todos os dias pelo mesmo
conúbio arquitetônico, também
desvio o olhar e o pensamento. Só
não desvio os meus passos porque
preciso chegar ao pé do antigo cinema São Luiz, onde, em tempos
idos, amassei namoradas de outros tempos e fui amassado por
elas. E sempre é bom citar o poeta
Villon, ""mais où sont les neiges
d"antan?". Onde estão?
Eu, pelo menos, estou ali. É força de expressão dizer que estou
ali. Quem ali está é o que sobrou
de mim, que deixei pedaços espalhados pela cidade, ao pé da qual
nasci, vivi e espero de morrer, se
Deus quiser, embora torcendo para que ele não queira já. (Insisto
neste ""ao pé" porque é tão machadiano quanto o próprio largo
do Machado.)
Mas, enquanto puder, vou levando. Como disse no início, essas
coisas acontecem. Mudei de sala.
Piorei de vida e não melhorei de
estilo.
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