São Paulo, segunda, 9 de março de 1998

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Ligados ao mundo por um prédio que balança e cai

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Estranha conjunção entre Brasil e mundo nas últimas semanas. O mundo viveu sob o impacto das armas químicas e biológicas. Anthrax (Antraz, em português), Sarin, Botulinum, Aflotoxin são os nomes que ocuparam as manchetes, enquanto se negociava com Saddam Hussein.
Ao impacto biológico no mundo, o Brasil respondia com o impacto da física, enchentes devastadoras e queda do edifício Palace na Barra da Tijuca.
De fato, seria um luxo preocupar-se, neste momento, com o que se discutiu no mundo. Que interesse pode ter para um brasileiro da Barra da Tijuca, que vê a implosão de sua janela, as notícias sobre a Cidade 19 na Rússia, onde 64 pessoas morreram e 96 adoeceram num vazamento de Antraz?
As calamidades nos afastaram do mundo trágico das armas biológicas. Prodígio da física homicida, Sergio Naya tentava explicar sua tática de construção, enquanto os japoneses condenavam a prisão perpétua os líderes da seita Aum Shinrikyo, por terem usado sarin no metrô de Tóquio.
Para todos que, de uma certa maneira, se interessaram pela luta planetária contra as armas atômicas ou, mesmo os mais modestos, que comemoraram o acordo banindo as minas antipessoais que matam tanta gente no mundo, o que se discute sobre as armas biológicas é assustador.
O pesadelo toma uma nova forma, no meu entender bem caracterizada por Richard Betts na revista "Foreing Affairs": as novas armas são de destruição de massa, não destroem o planeta como as armas atômicas, mas podem matar milhões de pessoas com pouco esforço.
Tanto no campo da química como no biológico, duas importantes convenções já foram assinadas, mas estamos longe de ter completa garantia. Nem todos os países estão comprometidos. Além disso, o arsenal biológico é versátil e está ao alcance de grupos terroristas.
Um dos membros da própria Aum Shinrikyo foi ao Zaire com a missão de ajudar as vítimas do vírus Ebola. Mas ao que tudo indica trouxe várias amostras em sua bagagem.
A insegurança se acentua em casos como o da própria Rússia. O governo, em 92, anunciava se distanciar da guerra biológica, enquanto a KGB continuava suas pesquisas na região de Sverdlovsk, onde se acha a Cidade 19.
Durante a Segunda Guerra, no chamado 731 da Manchúria, os japoneses também fizeram experiência com prisioneiros, injetando botulismo, encefalite, febre tifóide e varíola. E depois da guerra, os Estados Unidos também desenvolveram seu arsenal, sendo que, em Umatilla, Oregon, chegaram a concentrar, em números de 1995, quase 4 mil toneladas, em Toele, Utah, quase 14 mil, para citar apenas alguns pontos.
A guerra química e biológica não é uma novidade. Alguns fundamentos históricos interessantes estão no livro de Alfred C. Crosby, "Ecological Imperalism - the Biological Expansion of Europe". A análise que ele faz da chegada da varíola entre os aborígenes australianos talvez pudesse orientar quem se interessa pela chegada do vírus da Aids entre os ianomamis.
Infelizmente, meu exemplar do livro de Crosby se molhou na chuva. Mais uma convergência do biológico que preocupa o mundo com o físico que nos preocupa no momento.
Fragmentos do bloco de pedra que sustentava a coluna mestra do Palace foram trazidos para Brasília. Eles se desintegravam na mão. Era estranho vê-los se desintegrando entre os dedos das vítimas e depois ver os telejornais mostrando a cidade de São Paulo se inundar. Nosso drama físico nos preservou da angústia biológica que o debate mundial enfocou nas duas últimas semanas. Pode se chamar isto de consolo?



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