São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

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RODAPÉ

Temporada no inferno, portas cerradas

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Fechar-se no inferno de "Entre Quatro Paredes" (1944), peça em um ato de Jean-Paul Sartre (1905-1980), é uma maneira digna de celebrar o centenário daquele que se confunde com a figura do intelectual público no século passado.
Repleto de monólogos e diálogos de surdos, o drama moderno brota de uma contradição formal de base: seu princípio motor -a relação intersubjetiva, expressa no embate verbal dos personagens e traduzida em ação- sobrevive, hoje, atrofiado e terminal, socialmente debilitado, como lembra Peter Szondi.
Atrevendo-se a transpor a fina barreira que separa a insignificância da rotina de personagens inócuos, morte em vida, do insólito dia-a-dia de personagens mortos, Sartre opera uma inversão irônica que lembra a passagem do "autor defunto" ao "defunto autor" em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, evidenciando o que de infernal se esconde na amenidade cotidiana.
Seu ponto de partida é a experiência, comum em tempos de guerra, da espera em confinamento, situação de contínua convivência, suspensas as obrigações e as possibilidades da vida ativa, com o espelho incômodo, mas indispensável, que "os outros" representam. A pergunta que Sartre se coloca é como seria se a tortura se prolongasse indefinidamente e três personagens "ausentes", "não mais entre nós", se vissem forçadas a legitimar escolhas e decisões retrospectivamente, por meio do olhar alheio, carrasco.
Garcin, um jornalista e literato que vacila na passagem da palavra à ação, é o primeiro a chegar a este inferno muito pouco bruegheliano. Conduzido por um criado, encontra um pequeno salão sem janelas, permanente e intensamente iluminado, mobiliado por três canapés, uma lareira falsa, encimada por um busto, paredes nuas. A ele se juntam duas mulheres, Inez, pivô de um triângulo amoroso de desfecho trágico, e Estelle, mimada refém de uma vaidade frívola.
Sob essa luz perpétua, sem descanso, no compasso de uma temporalidade manca, de má infinitude, cada um oferece sua biografia a julgamento: o intelectual, sua covardia autocentrada e heroísmo mistificador; Inez, o vampirismo emocional; Estelle, um egoísmo homicida. Num jogo perverso, manipulação sem fim de fraquezas irremissíveis, as alianças a dois são sempre desestabilizadas pelo terceiro. É o caso do interesse amoroso de Inez por Estelle, da necessidade desta em se afirmar pela atração física sobre Garcin, desprezando o desejo da primeira, ou a ânsia do jornalista em ser inocentado por uma consciência outra que não a sua.
Para além do pensador que buscou a conciliação entre o existencialismo e o marxismo, do crítico literário agudo, do homem íntegro, o teatro sartreano ainda fica de pé. Ainda assim, parte de sua força deriva da concretização artística de filosofemas existencialistas ("liberdade", "escolha", "situação" caem bem na leitura da peça e potencializam seu vigor).
No fim dos anos 1920, Sartre e Samuel Beckett (1906-1989) freqüentaram os mesmos corredores da prestigiosa École Normale da Rue Ulm, em Paris. Contemporâneos, o filósofo dramaturgo e o dramaturgo que se recusava a filosofar nunca foram grandes amigos. Uma das primeiras incursões de Beckett na prosa francesa foi um conto, "Suite" ("Continuação", depois rebatizado "O Fim"), publicado pela primeira vez pela metade, em "Les Temps Modernes". Quando o irlandês enviou, depois, a parte final do texto, o autor de "O Ser e o Nada", diretor da revista, espumou, julgando-se vítima de um expediente ardiloso (era norma não repetir o mesmo autor em volumes subseqüentes).
Da mesma forma que não entreviu na novidade formal do conto a necessidade de uma continuação, Sartre não extraiu da situação inicial do confinamento todo seu potencial dramático -o que um cotejo de "Entre Quatro Paredes" e "Fim de Partida", peça que Beckett concluiu em 1956, demonstra. Apesar da vizinhança dos centenários, a distância que separa a dramaturgia de Sartre da beckettiana ainda é a que distingue a revolta da revolução.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Entre Quatro Paredes
   
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradução: Alcione Araújo e Pedro Hussak
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 20,90 (128 págs.)


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