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RODAPÉ
Temporada no inferno, portas cerradas
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Fechar-se no inferno de
"Entre Quatro Paredes"
(1944), peça em um ato de Jean-Paul Sartre (1905-1980), é uma
maneira digna de celebrar o centenário daquele que se confunde
com a figura do intelectual público no século passado.
Repleto de monólogos e diálogos de surdos, o drama moderno
brota de uma contradição formal
de base: seu princípio motor -a
relação intersubjetiva, expressa
no embate verbal dos personagens e traduzida em ação- sobrevive, hoje, atrofiado e terminal, socialmente debilitado, como
lembra Peter Szondi.
Atrevendo-se a transpor a fina
barreira que separa a insignificância da rotina de personagens inócuos, morte em vida, do insólito
dia-a-dia de personagens mortos,
Sartre opera uma inversão irônica
que lembra a passagem do "autor
defunto" ao "defunto autor" em
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, evidenciando o que de infernal se esconde na amenidade cotidiana.
Seu ponto de partida é a experiência, comum em tempos de
guerra, da espera em confinamento, situação de contínua convivência, suspensas as obrigações
e as possibilidades da vida ativa,
com o espelho incômodo, mas indispensável, que "os outros" representam. A pergunta que Sartre
se coloca é como seria se a tortura
se prolongasse indefinidamente e
três personagens "ausentes",
"não mais entre nós", se vissem
forçadas a legitimar escolhas e decisões retrospectivamente, por
meio do olhar alheio, carrasco.
Garcin, um jornalista e literato
que vacila na passagem da palavra
à ação, é o primeiro a chegar a este
inferno muito pouco bruegheliano. Conduzido por um criado,
encontra um pequeno salão sem
janelas, permanente e intensamente iluminado, mobiliado por
três canapés, uma lareira falsa, encimada por um busto, paredes
nuas. A ele se juntam duas mulheres, Inez, pivô de um triângulo
amoroso de desfecho trágico, e
Estelle, mimada refém de uma
vaidade frívola.
Sob essa luz perpétua, sem descanso, no compasso de uma temporalidade manca, de má infinitude, cada um oferece sua biografia a julgamento: o intelectual, sua
covardia autocentrada e heroísmo mistificador; Inez, o vampirismo emocional; Estelle, um egoísmo homicida. Num jogo perverso, manipulação sem fim de fraquezas irremissíveis, as alianças a
dois são sempre desestabilizadas
pelo terceiro. É o caso do interesse
amoroso de Inez por Estelle, da
necessidade desta em se afirmar
pela atração física sobre Garcin,
desprezando o desejo da primeira, ou a ânsia do jornalista em ser
inocentado por uma consciência
outra que não a sua.
Para além do pensador que buscou a conciliação entre o existencialismo e o marxismo, do crítico
literário agudo, do homem íntegro, o teatro sartreano ainda fica
de pé. Ainda assim, parte de sua
força deriva da concretização artística de filosofemas existencialistas ("liberdade", "escolha", "situação" caem bem na leitura da
peça e potencializam seu vigor).
No fim dos anos 1920, Sartre e
Samuel Beckett (1906-1989) freqüentaram os mesmos corredores da prestigiosa École Normale
da Rue Ulm, em Paris. Contemporâneos, o filósofo dramaturgo e
o dramaturgo que se recusava a filosofar nunca foram grandes amigos. Uma das primeiras incursões
de Beckett na prosa francesa foi
um conto, "Suite" ("Continuação", depois rebatizado "O Fim"),
publicado pela primeira vez pela
metade, em "Les Temps Modernes". Quando o irlandês enviou,
depois, a parte final do texto, o autor de "O Ser e o Nada", diretor da
revista, espumou, julgando-se vítima de um expediente ardiloso
(era norma não repetir o mesmo
autor em volumes subseqüentes).
Da mesma forma que não entreviu na novidade formal do
conto a necessidade de uma continuação, Sartre não extraiu da situação inicial do confinamento
todo seu potencial dramático -o
que um cotejo de "Entre Quatro
Paredes" e "Fim de Partida", peça
que Beckett concluiu em 1956, demonstra. Apesar da vizinhança
dos centenários, a distância que
separa a dramaturgia de Sartre da
beckettiana ainda é a que distingue a revolta da revolução.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Entre Quatro Paredes
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradução: Alcione Araújo e Pedro Hussak
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 20,90 (128 págs.)
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