São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

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LIVROS

ROMANCE

"General do Exército Morto", do escritor albanês, mostra militar que vai exumar vítimas da Segunda Guerra

Kadaré lança obra-prima do rigor narrativo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Como retratar um povo através dos olhos de seu inimigo? Mediante essa premissa geral, o escritor albanês Ismail Kadaré, 69, escreveu "O General do Exército Morto", um de seus trabalhos mais famosos e seguramente uma obra-prima do rigor narrativo, da criação atmosférica e da inquirição sobre os limites do conhecimento.
A situação-base remete a imagens dignas de "Esperando Godot", de Samuel Beckett. Um general e um padre italianos chegam à Albânia com a missão de exumar os corpos de conterrâneos que ali tombaram durante a Segunda Guerra Mundial, mais de 20 anos antes.
De cemitério em cemitério, desencavam, metem cadáveres em sacos de náilon, especificam características físicas dos restos, contrapondo com as listas fornecidas pelo governo. Dia após dia, mês após mês, a jornada vai se tornando mais tensa e angustiante, resultando num conflito quase anunciado com seus antigos adversários.
No início, o general se compara aos gregos e troianos, que chegavam a interromper batalhas para enterrar seus mortos com dignidade. Como um herói homérico, ele caminharia diante da populaça bárbara, porém cordial, cumprindo seu nobre ministério. Claro que esses conceitos não se justificam. Os albaneses não são um povo cordial, ainda que compassivo, nem bárbaro, embora constrangido a um regime de quase subsistência.
O interessante é que quase nada do que se relaciona a eles se mostra tal como é, mas como parece ser. Não só os descobrimos pela visão preconceituosa do general, mas esta é alimentada por vias indiretas. Uma das mais impressionantes é a lenda de um camponês que combateu sozinho um batalhão inteiro desembarcado nas costas do Adriático.
"É porque os albaneses, exatamente por sua natureza, têm a guerra na alma. Atiram-se nela com total consciência (...). Século após século, não fazem outra coisa senão representar uma sangrenta peça de teatro."
Verdade? É possível que apenas parte dela, pois além de tudo, as palavras acima são proferidas pelo padre, um personagem não propriamente isento. Mas quem é? Por sua própria estrutura, o romance não permite respostas fáceis.
Exumar é tirar do esquecimento. Mas, no romance, é também compreender por meio do próprio mecanismo do esquecimento, do esfacelamento, como numa exumação às avessas. Pouco a pouco, os albaneses surgem diante de nós, não como seres palpáveis, mas como figuras de pesadelo, de lenda. Quanto mais os vemos assim, porém, mais reais nos parecem. Kadaré parte do realismo para o fantasmagórico e, daí, volta ao real.
Nunca apreenderemos a verdade: é isso o que esse real nos conta. Ou, como lamenta o general: "Podemos cavar e entrar facilmente no solo deles, mas, quanto a penetrar em sua alma, jamais".


O General do Exército Morto
    
Autor: Ismail Kadaré
Tradução: Rejane Janowitzer
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 44,90 (312 págs.)


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