São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

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ENSAIO/"A FONTE ENVENENADA"

Obra vê sublimação em Gonçalves Dias

LAWRENCE FLORES PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde que Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", fez lúcidos comentários sobre o romantismo brasileiro, falar de seus poetas tornou-se dura tarefa. Um livro novo, "A Fonte Envenenada" (Nova Alexandria), de Marcos Flamínio Peres, editor do caderno Mais!, se arriscou nesse lugar perigoso e fascinante. O livro analisa três poemas de Gonçalves Dias (1823-1864), "O Mar", "A Tarde" e "Adeus". São hinos, devaneios da palavra, que nada lembram os chamados "problemas identitários".
O crítico dá relevo ao leitmotiv da natureza na poesia de Gonçalves Dias, colhendo no conceito schilleriano e no sublime kantiano as duas esferas que regem as inflexões da sua poesia: se o natural schilleriano expressa a graça em que o sujeito se abandona à fusão amigável com a alteridade, o sublime expressa o conflito em que ele se vê ameaçado pela natureza. O crítico faz incursões relâmpago no "Don Juan" de lorde Byron, coleta dele uma cena essencial, retorna para cotejá-la com Gonçalves Dias. A passagem é a célebre cena de Haidée, abandono da carne, de plenitude entre dois amantes. Para o autor, a mesma sensação está em "A Tarde".
Que relação existe entre a narrativa veloz, cheia de verve de lorde Byron e as construções de nosso romantismo? O fundo de ressentimento que Byron soube expressar numa "catarse" e que Gonçalves Dias, ambicioso, tinha de ocultar como um pecado lesa-poesia. Flamínio flagra em uma carta de Gonçalves Dias uma declaração orgulhosa, pouco sublime e idealizadora: "Esta gente que se dá comigo não sabe que independência que eu tenho (...) não sabem que por baixo d'esta máscara de cera que todos me vêem, há uma vontade inflexível, há uma estátua de ferro." Palavras que o crítico esclarece como um sintoma de arrivismo do gênero stendhaliano, de um Sorel.
Marcos Flamínio Peres não se limita a estudar os poemas de modo apenas imanente. Ele vê na abstenção de Gonçalves Dias, na raridade de "referências" mundanas, um curioso sintoma. Os índices do ressentimento, pessoal e social, se encontram nas pequenas particularidades dos versos do poeta, nas suas "mudanças de humor" ou ainda na espiritualização sofrida pelos conflitos.
Essa espiritualização é explorada por Flamínio: há um limite do dizer poético que se intensifica no Brasil pelas limitações de um mundo em que a promoção dependia do que se dizia diante dos notáveis. Neste mundo, a sublimação e idealização poéticas eram a única via possível. Quem conhece um pouco sobre a vida de Gonçalves Dias, que viveu em várias situações como "agregado" de amigos, como uma espécie de "bela alma", pode adivinhar com que tipo de expressão lhe era permitido falar de seu ressentimento, social e pessoal. A virtude do livro de Flamínio Peres é reaver os elos entre figuração poética da natureza, intimidade e subjetividade, entrelaçando essas duas dimensões com o "momento social" vivido por Gonçalves Dias.


Lawrence Flores Pereira é crítico e tradutor.

A Fonte Envenenada
    
Autor: Marcos Flamínio Peres
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 34 (200 págs.)


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