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FERNANDO GABEIRA
O outro lado do rio
Trinta pessoas foram assassinadas na Baixada Fluminense. Faz pouco mais de uma semana, mas parece longe. O episódio já vai quase se perdendo nas
camadas mais profundas da memória.
No dia posterior ao assassinato
em massa, uma professora de criminologia da PUC tentou discutir
o tema com seus alunos. O interesse era pequeno. São fatos comuns em certas áreas da cidade,
onde o abandono e a pobreza
criam um caldo de cultura propício à violência. Uma coisa que
acontece entre eles, o que fazer?
Há uma base de realidade nisso. A Baixada Fluminense, segundo as pesquisas, registra 2.000 crimes de morte por ano. Seu índice
de homicídio é de 74 por 100 mil
habitantes, comparável ao de
países em guerra.
É falso supor que nada temos a
ver com os crimes. Também
quando morrem homossexuais,
costuma-se atribuir o assassinato
à cultura de violência entre as minorias sociais, na outra margem
do rio.
Nessa chacina morreu um travesti, mas pouco se falou dele.
Talvez para não dar atenuantes
aos criminosos. Matar travesti é
quase um ato de rotina. Mencionar esse detalhe retiraria o caráter excepcional dessa macabra
operação, que exterminou crianças, trabalhadores e a dona de
um bar.
Inconscientemente, vamos
criando uma camada de defesa
contra o horror. As crianças indígenas morrem porque os índios
têm a cultura de alimentá-las por
último. Mulheres são estupradas
porque, de certa forma, provocaram seus agressores.
Não há como fugir da realidade
das ruas. Em primeiro lugar, porque há uma unidade indissolúvel
entre os seres humanos. Todos fomos atingidos. Em segundo lugar,
porque é ilusão ignorar que a violência urbana se espalha de uma
forma ainda imperfeitamente democrática pelos bairros mais ricos
da metrópole e se diversifica.
Quem diria, há alguns meses, que
mães de jogadores de futebol seriam o alvo preferencial de seqüestros?
Assisti aos enterros na Baixada
e fiquei perto dos túmulos para
anotar o lamento dos familiares.
Era um lamento direto. A irmã de
um jovem de 19 anos, morto pelo
bando, perguntava aos gritos:
"Como é possível entregar armas
e fardas a quem comete crimes
como esse?".
Numa outra ponta da linha, a
professora de criminologia afirmava aos seus alunos: "Faltou
controle, pois ninguém começa
matando criancinhas. É muito
improvável que tenham chegado
a esse ponto sem percorrer uma
longa trajetória de crimes".
Dos países que visitei, o único
onde a polícia tinha o hábito de
decapitar suas vítimas e lançar
suas cabeças como um aviso era o
Haiti. Nesse particular, a polícia
da Baixada se iguala aos haitianos. Teoricamente, isso deveria
nos mover, pois o Exército brasileiro está no Haiti, com a missão,
entre outras, de neutralizar os
métodos violentos da polícia de
lá.
É provável que as autoridades
considerem um ponto final nesse
caso a prisão dos assassinos. Elas
tendem a se esquivar de um cara
a cara com o problema, que exige
muito mais do que a simples prisão do grupo de extermínio.
Qualquer pessoa sensata sabe
que há, no Brasil, um grande clamor contra a violência urbana há
alguns anos. Manifestações pela
paz, campanha de desarmamento, fóruns e seminários sucedem-se nas telas de TV e nas páginas
de jornal. Mas sabemos também
que, apesar de toda a discussão, a
situação só tem piorado.
Alguma coisa está errada em
nosso caminho. Por que insistir
apenas neles quando se mostram
insuficientes? Uma das razões é a
dificuldade de encararmos com
coragem uma reforma da polícia.
Há cidades que a realizaram, como Nova York. O mundo não
acabou com isso.
No caso brasileiro, o que afasta
os governantes da idéia são os
inúmeros transtornos que vislumbram. O primeiro deles é o perigo da sabotagem, do corpo mole, destinado a bombardear a mudança. O segundo é a liberação,
na sociedade, de grupos que têm
familiaridade com as ações armadas e se vêem desempregados.
É preciso trocar o sangue sem
que o coração pare. Daí a importância do Exército. Ele não necessita fazer o papel de polícia. Assim como no Haiti, ele apenas daria apoio às operações da nova
polícia, para manter a ordem e
superar as resistências internas às
mudanças.
Alguns podem argumentar que
a presença do Exército nas ruas
de Porto Príncipe é constitucional, na Baixada Fluminense não.
Há possibilidades legais de apoiar
a polícia em caso de emergência.
É claro que muitos podem achar
que não estamos em emergência.
Não é essa a opinião dos parentes
e amigos dos que estão tombando.
Em vez de encarar essa tarefa
estratégica, o governo prepara o
Exército para conter motins e manifestações de massa. É um uso
equivocado, uma dispersão de
energia. Não se podem mobilizar
os serviços de inteligência, os helicópteros, a rede de comunicação,
a experiência tática, pois é proibido fazer papel de polícia. Enquanto isso, são preparados para
o áspero papel de polícia, a repressão de manifestações.
Todos esses rodeios servem para
evitar uma reforma real da polícia. Estamos há anos tentando fazer omelete sem quebrar os ovos .
Não vejo nisso uma saída para todos os problemas. Apenas uma
melhora real.
Estamos todos em dívida com
as pessoas que querem um mínimo de segurança. Teremos de
gastar mais e, sobretudo, melhor,
nosso dinheiro; teremos de passar
por uma ou outra convulsão.
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