São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

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FERNANDO GABEIRA

O outro lado do rio

Trinta pessoas foram assassinadas na Baixada Fluminense. Faz pouco mais de uma semana, mas parece longe. O episódio já vai quase se perdendo nas camadas mais profundas da memória.
No dia posterior ao assassinato em massa, uma professora de criminologia da PUC tentou discutir o tema com seus alunos. O interesse era pequeno. São fatos comuns em certas áreas da cidade, onde o abandono e a pobreza criam um caldo de cultura propício à violência. Uma coisa que acontece entre eles, o que fazer?
Há uma base de realidade nisso. A Baixada Fluminense, segundo as pesquisas, registra 2.000 crimes de morte por ano. Seu índice de homicídio é de 74 por 100 mil habitantes, comparável ao de países em guerra.
É falso supor que nada temos a ver com os crimes. Também quando morrem homossexuais, costuma-se atribuir o assassinato à cultura de violência entre as minorias sociais, na outra margem do rio.
Nessa chacina morreu um travesti, mas pouco se falou dele. Talvez para não dar atenuantes aos criminosos. Matar travesti é quase um ato de rotina. Mencionar esse detalhe retiraria o caráter excepcional dessa macabra operação, que exterminou crianças, trabalhadores e a dona de um bar.
Inconscientemente, vamos criando uma camada de defesa contra o horror. As crianças indígenas morrem porque os índios têm a cultura de alimentá-las por último. Mulheres são estupradas porque, de certa forma, provocaram seus agressores.
Não há como fugir da realidade das ruas. Em primeiro lugar, porque há uma unidade indissolúvel entre os seres humanos. Todos fomos atingidos. Em segundo lugar, porque é ilusão ignorar que a violência urbana se espalha de uma forma ainda imperfeitamente democrática pelos bairros mais ricos da metrópole e se diversifica. Quem diria, há alguns meses, que mães de jogadores de futebol seriam o alvo preferencial de seqüestros?
Assisti aos enterros na Baixada e fiquei perto dos túmulos para anotar o lamento dos familiares. Era um lamento direto. A irmã de um jovem de 19 anos, morto pelo bando, perguntava aos gritos: "Como é possível entregar armas e fardas a quem comete crimes como esse?".
Numa outra ponta da linha, a professora de criminologia afirmava aos seus alunos: "Faltou controle, pois ninguém começa matando criancinhas. É muito improvável que tenham chegado a esse ponto sem percorrer uma longa trajetória de crimes".
Dos países que visitei, o único onde a polícia tinha o hábito de decapitar suas vítimas e lançar suas cabeças como um aviso era o Haiti. Nesse particular, a polícia da Baixada se iguala aos haitianos. Teoricamente, isso deveria nos mover, pois o Exército brasileiro está no Haiti, com a missão, entre outras, de neutralizar os métodos violentos da polícia de lá.
É provável que as autoridades considerem um ponto final nesse caso a prisão dos assassinos. Elas tendem a se esquivar de um cara a cara com o problema, que exige muito mais do que a simples prisão do grupo de extermínio.
Qualquer pessoa sensata sabe que há, no Brasil, um grande clamor contra a violência urbana há alguns anos. Manifestações pela paz, campanha de desarmamento, fóruns e seminários sucedem-se nas telas de TV e nas páginas de jornal. Mas sabemos também que, apesar de toda a discussão, a situação só tem piorado.
Alguma coisa está errada em nosso caminho. Por que insistir apenas neles quando se mostram insuficientes? Uma das razões é a dificuldade de encararmos com coragem uma reforma da polícia. Há cidades que a realizaram, como Nova York. O mundo não acabou com isso.
No caso brasileiro, o que afasta os governantes da idéia são os inúmeros transtornos que vislumbram. O primeiro deles é o perigo da sabotagem, do corpo mole, destinado a bombardear a mudança. O segundo é a liberação, na sociedade, de grupos que têm familiaridade com as ações armadas e se vêem desempregados.
É preciso trocar o sangue sem que o coração pare. Daí a importância do Exército. Ele não necessita fazer o papel de polícia. Assim como no Haiti, ele apenas daria apoio às operações da nova polícia, para manter a ordem e superar as resistências internas às mudanças.
Alguns podem argumentar que a presença do Exército nas ruas de Porto Príncipe é constitucional, na Baixada Fluminense não. Há possibilidades legais de apoiar a polícia em caso de emergência. É claro que muitos podem achar que não estamos em emergência. Não é essa a opinião dos parentes e amigos dos que estão tombando.
Em vez de encarar essa tarefa estratégica, o governo prepara o Exército para conter motins e manifestações de massa. É um uso equivocado, uma dispersão de energia. Não se podem mobilizar os serviços de inteligência, os helicópteros, a rede de comunicação, a experiência tática, pois é proibido fazer papel de polícia. Enquanto isso, são preparados para o áspero papel de polícia, a repressão de manifestações.
Todos esses rodeios servem para evitar uma reforma real da polícia. Estamos há anos tentando fazer omelete sem quebrar os ovos . Não vejo nisso uma saída para todos os problemas. Apenas uma melhora real.
Estamos todos em dívida com as pessoas que querem um mínimo de segurança. Teremos de gastar mais e, sobretudo, melhor, nosso dinheiro; teremos de passar por uma ou outra convulsão.


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