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LIVROS LANÇAMENTO
Os Versos Satânicos
CLAUDIO GARON
especial para a Folha
Se a Revolução Islâmica do
Irã despertou o
mundo para a
força do integrismo ou fundamentalismo
como arma
contra um regime corrupto e opressor como o do
xá Reza Pahlevi, o lançamento de
"Os Versos Satânicos" e sua reação entre os muçulmanos mostrou o perigo de seu uso indiscriminado como argumento político.
Dez anos depois de seu lançamento, o livro chega às livrarias brasileiras em tradução nacional -a
anterior é portuguesa. Essa distância no tempo pode fazer que muitos leitores esqueçam o tumulto
em torno da obra.
O livro foi considerado ofensivo
ao profeta Maomé por lideranças
islâmicas. Seu autor, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, foi
condenado à morte pelo líder político e religioso do Irã de então, o
aiatolá Khomeini. A reação concentrada de escritores, organizações de defesa dos direitos humanos e governos ocidentais -os 12
países que formavam a União Européia na época chegaram a retirar
seus embaixadores do Irã por causa do decreto religioso- assegurou a publicação do livro, a segurança do escritor e, dessa forma, a
liberdade de expressão.
O trecho que provocou a ira dos
clérigos é a segunda parte do livro,
chamada "Mahound", um nome
considerado ofensivo ao profeta
pelos muçulmanos. Numa Meca
metafórica chamada Jahilia, comercial como a original na época
do profeta, o protagonista e seus
seguidores defendem a superioridade do Deus único sobre a plêiade de 360 divindades adoradas na
cidade. Numa tentativa de cooptar
Mahound e os seus, o principal líder político local, Abu Simbel,
propõe um acordo: em troca de
um lugar no conselho de mercadores da cidade, o profeta teria de
aceitar três divindades femininas
no seu panteão -não por acaso,
aquelas cujo culto era controlado
pela família da mulher de Abu
Simbel. Contra a opinião de seus
seguidores, Mahound aceita e
pronuncia os versos satânicos,
que abjurará mais tarde. Essa história, como todas as demais do livro, levanta um sem-número de
questões, que são a verdadeira essência da obra, uma viagem alucinante por um mundo ao mesmo
tempo globalizado e fragmentado.
Não é mera coincidência que o
livro tenha sido lançado em 1988,
quando começavam a ficar evidentes as fissuras da ordem internacional da Guerra Fria. A globalização, movimento que ganhou
força após a queda do Muro de
Berlim, em 1989, interligou de forma aparentemente indissolúvel as
várias partes do mundo, tornando-se a marca fundamental da nova ordem. "Os Versos Satânicos"
desenham, no interior de cada
uma de suas partes e no relacionamento entre elas, um mundo interligado e uma história acelerada.
A ação ocorre em várias partes do
mundo. O entregador de marmitas de Bombaim (atual Mumbai),
transformado em ator de sucesso
do cinema indiano, participa da
experiência de uma dona-de-casa
britânica que passou parte de sua
vida nos pampas argentinos, teve
um caso com um gaúcho e enfrentou a demagogia peronista. O fato
de o ex-entregador de marmitas se
chamar Gibreel (do arcanjo Gabriel) é apenas mais uma das muitas questões do livro.
O fim das certezas da Guerra Fria
fez explodir o número de temas e
atores do dia-a-dia. Essa fragmentação, comprovada pelo impacto
internacional do radicalismo religioso contido na própria condenação à morte de Rushdie, aparece
de forma contundente em "Os
Versos Satânicos". Os dois principais protagonistas contemporâneos, Gibreel Farishta e Saladin
Chamcha, se conheceram a bordo
de um avião da Air India sequestrado num vôo rumo a Londres
por militantes sikhs, que defendem a separação do Punjab da Índia. Numa irônica antecipação de
seu futuro, Rushdie escreve que o
primeiro passageiro executado pelos seqüestradores foi escolhido
exatamente por sua suposta apostasia, ação da qual o autor de "Os
Versos Satânicos" foi acusado.
A fragmentação do cotidiano às
vésperas do século 21, no entanto,
vai muito além das causas políticas. Em "Os Versos Satânicos",
Rushdie mistura, numa seqüência
aparentemente incontrolável, temas e informações caros aos mais
diversos grupos nacionais, étnicos, religiosos e culturais. Assim, a
leitura pode parecer um grande
recorte de informações que foram
embaralhadas e reorganizadas em
torno de um eixo apenas vislumbrado, mas sempre presente.
"Os Versos Satânicos" são a resposta de Salman Rushdie às inúmeras perguntas de um cotidiano
pleno de contradições, entre elas o
fato de um escritor nascido numa
família muçulmana da Índia e radicado em Londres ter realizado a
velha máxima rabínica de responder uma questão com outra.
Livro: Os Versos Satânicos
Autor: Salman Rushdie
Tradução: Misael H. Dursan
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 34 (528 págs.)
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