São Paulo, quinta, 9 de abril de 1998

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LIVROS LANÇAMENTO
Os Versos Satânicos

CLAUDIO GARON
especial para a Folha

Se a Revolução Islâmica do Irã despertou o mundo para a força do integrismo ou fundamentalismo como arma contra um regime corrupto e opressor como o do xá Reza Pahlevi, o lançamento de "Os Versos Satânicos" e sua reação entre os muçulmanos mostrou o perigo de seu uso indiscriminado como argumento político. Dez anos depois de seu lançamento, o livro chega às livrarias brasileiras em tradução nacional -a anterior é portuguesa. Essa distância no tempo pode fazer que muitos leitores esqueçam o tumulto em torno da obra.
O livro foi considerado ofensivo ao profeta Maomé por lideranças islâmicas. Seu autor, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, foi condenado à morte pelo líder político e religioso do Irã de então, o aiatolá Khomeini. A reação concentrada de escritores, organizações de defesa dos direitos humanos e governos ocidentais -os 12 países que formavam a União Européia na época chegaram a retirar seus embaixadores do Irã por causa do decreto religioso- assegurou a publicação do livro, a segurança do escritor e, dessa forma, a liberdade de expressão.
O trecho que provocou a ira dos clérigos é a segunda parte do livro, chamada "Mahound", um nome considerado ofensivo ao profeta pelos muçulmanos. Numa Meca metafórica chamada Jahilia, comercial como a original na época do profeta, o protagonista e seus seguidores defendem a superioridade do Deus único sobre a plêiade de 360 divindades adoradas na cidade. Numa tentativa de cooptar Mahound e os seus, o principal líder político local, Abu Simbel, propõe um acordo: em troca de um lugar no conselho de mercadores da cidade, o profeta teria de aceitar três divindades femininas no seu panteão -não por acaso, aquelas cujo culto era controlado pela família da mulher de Abu Simbel. Contra a opinião de seus seguidores, Mahound aceita e pronuncia os versos satânicos, que abjurará mais tarde. Essa história, como todas as demais do livro, levanta um sem-número de questões, que são a verdadeira essência da obra, uma viagem alucinante por um mundo ao mesmo tempo globalizado e fragmentado.
Não é mera coincidência que o livro tenha sido lançado em 1988, quando começavam a ficar evidentes as fissuras da ordem internacional da Guerra Fria. A globalização, movimento que ganhou força após a queda do Muro de Berlim, em 1989, interligou de forma aparentemente indissolúvel as várias partes do mundo, tornando-se a marca fundamental da nova ordem. "Os Versos Satânicos" desenham, no interior de cada uma de suas partes e no relacionamento entre elas, um mundo interligado e uma história acelerada. A ação ocorre em várias partes do mundo. O entregador de marmitas de Bombaim (atual Mumbai), transformado em ator de sucesso do cinema indiano, participa da experiência de uma dona-de-casa britânica que passou parte de sua vida nos pampas argentinos, teve um caso com um gaúcho e enfrentou a demagogia peronista. O fato de o ex-entregador de marmitas se chamar Gibreel (do arcanjo Gabriel) é apenas mais uma das muitas questões do livro.
O fim das certezas da Guerra Fria fez explodir o número de temas e atores do dia-a-dia. Essa fragmentação, comprovada pelo impacto internacional do radicalismo religioso contido na própria condenação à morte de Rushdie, aparece de forma contundente em "Os Versos Satânicos". Os dois principais protagonistas contemporâneos, Gibreel Farishta e Saladin Chamcha, se conheceram a bordo de um avião da Air India sequestrado num vôo rumo a Londres por militantes sikhs, que defendem a separação do Punjab da Índia. Numa irônica antecipação de seu futuro, Rushdie escreve que o primeiro passageiro executado pelos seqüestradores foi escolhido exatamente por sua suposta apostasia, ação da qual o autor de "Os Versos Satânicos" foi acusado.
A fragmentação do cotidiano às vésperas do século 21, no entanto, vai muito além das causas políticas. Em "Os Versos Satânicos", Rushdie mistura, numa seqüência aparentemente incontrolável, temas e informações caros aos mais diversos grupos nacionais, étnicos, religiosos e culturais. Assim, a leitura pode parecer um grande recorte de informações que foram embaralhadas e reorganizadas em torno de um eixo apenas vislumbrado, mas sempre presente.
"Os Versos Satânicos" são a resposta de Salman Rushdie às inúmeras perguntas de um cotidiano pleno de contradições, entre elas o fato de um escritor nascido numa família muçulmana da Índia e radicado em Londres ter realizado a velha máxima rabínica de responder uma questão com outra.

Livro: Os Versos Satânicos Autor: Salman Rushdie
Tradução: Misael H. Dursan
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 34 (528 págs.)



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