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MÚSICA ERUDITA
A terceira vida de Camargo Guarnieri
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Quantas vezes nasce um
compositor? Veja-se este caso: a primeira vez, quando os
DNAs fazem seu milagre e vem à
luz um bebê de nome Mozart, sobrenome Camargo Guarnieri, no
ano de 1907, na cidade de Tietê,
interior paulista.
A segunda, quando ele mesmo
risca o Mozart do nome, em fins
da década de 1920, e se torna musicalmente pai e filho de si. A terceira talvez seja a mais importante. É um nascimento musical de
Camargo Guarnieri (que morreu
em 1993) pelas mãos da Osesp,
consagrado no CD das "Sinfonias
nš 2 e 3", que a orquestra lança
hoje à noite, na Sala São Paulo.
Todo o nacionalismo do compositor ganha outros matizes
quando enfim se escuta essa música sem ranço. O que há de mais
"exótico" aqui não são os temas
indígenas ou caipiras, nem as síncopes, nem as escalas modais. Se é
verdade que, para ele, "a música
brasileira... terá que buscar na
música popular as suas características específicas" (M. Verhaalen,
"Camargo Guarnieri", Edusp), essa busca precisa ser escutada de
dentro. E só ele escutava assim,
num tom que a gente, agora, começa a entender e que vai muito
além do verde-amarelismo.
Só ele -e talvez seu mentor
Mário de Andrade, hoje chorando
de alegria, sentado no trono de
muiraquitã, observando os arcanjos e as icamiabas, com os fones
de ouvido explodindo no "Festivo" da "Uirapuru".
Só ele -e, quem dera, o professor Roberto Schwarz, a quem caberia explicar, com os necessários
requintes dialéticos, as tensões
entre conservadorismo e progresso, entre técnica moderna paulista e uma idéia atávica do Brasil,
tensões que articulam uma peça
como a "Sinfonia nš 2 (Uirapuru)", de 1945, e que se repetem, fora e dentro da música, nas realizações e projetos da própria Osesp.
Eis uma lição do CD: Camargo
Guarnieri como gênio paulista,
por excelência. Não tem o esplendor espontâneo de Villa-Lobos.
Não será jamais o compositor
mais popular. Mas é o mais refinado que já tivemos, responsável,
sozinho, pela elevação da cultura
nacional a planos nunca antes
nem depois alcançados no que diz
respeito à arte da música.
Um disco pode fazer isso? Já fez.
E fará mais, com sorte, pela música brasileira do que (como diria
seu Mário) nunca não se fez.
Nos últimos dias, na sequência
da matéria de Mario Cesar Carvalho, publicada na Folha em 17/4/
02, denunciando irregularidades
na contratação de funcionários da
Secretaria Estadual de Cultura, os
bastidores da música clássica vem
tremendo com fatos e boatos envolvendo, também, a Osesp. Ao
que se diz, muita coisa está para
ser denunciada e respondida. E
jornalismo é para isso.
Já à crítica cabe entender um
projeto e avaliar os resultados. A
proposta da Osesp, de gravar música brasileira como merece, num
selo internacional, só pode lhe
render elogios. Este primeiro disco é um marco. Que seja dedicado
a Camargo Guarnieri, o maior
compositor de São Paulo, confirma a vocação da Osesp como conjunto paulista. E sinaliza uma possibilidade de resolução daquelas
tensões que dão vida à música do
Mozart de Tietê e que ensinam,
dali, a escutar e gostar do Brasil.
Camargo Guarnieri - Sinfonias
nš 2 e 3
Artista: Orquestra Sinfônica do Estado
de SP, com John Neschling (regente)
Gravadora: Bis
Quanto: R$ 35
Lançamento: hoje, às 21h, e sábado, às
16h30, na Sala São Paulo (pça. Júlio
Prestes, s/nš, tel. 0/xx/11/3337-5414);
ingr.: de R$ 12 a R$ 36
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