São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA ERUDITA

A terceira vida de Camargo Guarnieri

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Quantas vezes nasce um compositor? Veja-se este caso: a primeira vez, quando os DNAs fazem seu milagre e vem à luz um bebê de nome Mozart, sobrenome Camargo Guarnieri, no ano de 1907, na cidade de Tietê, interior paulista.
A segunda, quando ele mesmo risca o Mozart do nome, em fins da década de 1920, e se torna musicalmente pai e filho de si. A terceira talvez seja a mais importante. É um nascimento musical de Camargo Guarnieri (que morreu em 1993) pelas mãos da Osesp, consagrado no CD das "Sinfonias nš 2 e 3", que a orquestra lança hoje à noite, na Sala São Paulo.
Todo o nacionalismo do compositor ganha outros matizes quando enfim se escuta essa música sem ranço. O que há de mais "exótico" aqui não são os temas indígenas ou caipiras, nem as síncopes, nem as escalas modais. Se é verdade que, para ele, "a música brasileira... terá que buscar na música popular as suas características específicas" (M. Verhaalen, "Camargo Guarnieri", Edusp), essa busca precisa ser escutada de dentro. E só ele escutava assim, num tom que a gente, agora, começa a entender e que vai muito além do verde-amarelismo.
Só ele -e talvez seu mentor Mário de Andrade, hoje chorando de alegria, sentado no trono de muiraquitã, observando os arcanjos e as icamiabas, com os fones de ouvido explodindo no "Festivo" da "Uirapuru".
Só ele -e, quem dera, o professor Roberto Schwarz, a quem caberia explicar, com os necessários requintes dialéticos, as tensões entre conservadorismo e progresso, entre técnica moderna paulista e uma idéia atávica do Brasil, tensões que articulam uma peça como a "Sinfonia nš 2 (Uirapuru)", de 1945, e que se repetem, fora e dentro da música, nas realizações e projetos da própria Osesp.
Eis uma lição do CD: Camargo Guarnieri como gênio paulista, por excelência. Não tem o esplendor espontâneo de Villa-Lobos. Não será jamais o compositor mais popular. Mas é o mais refinado que já tivemos, responsável, sozinho, pela elevação da cultura nacional a planos nunca antes nem depois alcançados no que diz respeito à arte da música.
Um disco pode fazer isso? Já fez. E fará mais, com sorte, pela música brasileira do que (como diria seu Mário) nunca não se fez.
Nos últimos dias, na sequência da matéria de Mario Cesar Carvalho, publicada na Folha em 17/4/ 02, denunciando irregularidades na contratação de funcionários da Secretaria Estadual de Cultura, os bastidores da música clássica vem tremendo com fatos e boatos envolvendo, também, a Osesp. Ao que se diz, muita coisa está para ser denunciada e respondida. E jornalismo é para isso.
Já à crítica cabe entender um projeto e avaliar os resultados. A proposta da Osesp, de gravar música brasileira como merece, num selo internacional, só pode lhe render elogios. Este primeiro disco é um marco. Que seja dedicado a Camargo Guarnieri, o maior compositor de São Paulo, confirma a vocação da Osesp como conjunto paulista. E sinaliza uma possibilidade de resolução daquelas tensões que dão vida à música do Mozart de Tietê e que ensinam, dali, a escutar e gostar do Brasil.


Camargo Guarnieri - Sinfonias nš 2 e 3     
Artista: Orquestra Sinfônica do Estado de SP, com John Neschling (regente)
Gravadora: Bis
Quanto: R$ 35
Lançamento: hoje, às 21h, e sábado, às 16h30, na Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš, tel. 0/xx/11/3337-5414); ingr.: de R$ 12 a R$ 36




Texto Anterior: "Star 2" é melhor que primeiro e pior que outros
Próximo Texto: Gastronomia - Nina Horta: A comida como ela é
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.