São Paulo, sábado, 9 de maio de 1998

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Torta no rosto, uma terapia

ALBERTO DINES

Colunista da Folha

Jogou pedras na polícia, os companheiros atiraram coquetéis molotv nos poderes constituídos, os intelectuais de mãos dadas nas ruas afirmaram que estavam virando o mundo de cabeça para baixo. Trinta anos depois, intelectuais, juristas e bispos acomodados em seus santuários continuam apostando no vale-tudo. Mas Daniel Cohn-Bendit, o dono das barricadas de Paris em maio de 68, reconciliado com a via pacífica, leva uma torta em pleno rosto.
Termina no mais puro estilo pastelão uma gloriosa jornada que inspirou duas gerações de jovens rebelados. A zorra aprontada pelos novos zorros contra Danny, o Vermelho, agora no Partido Verde, pretendia castigá-lo "por aparecer demais na TV". Foi armada por uma facção superanarquista dos estudantes franceses, membros da Confederação Nacional do Trabalho.
Forçar repetições históricas dá em farsa, dizia Karl Marx. A despeito do acepipe jogado no rosto de Cohn-Bendit nem todas as duplicações precisam ter a grife dos Irmãos Marx.
A rebelião parisiense foi dirigida contra tudo e todos, mas teve dois alvos claros: o Estado forte, centralizador, personificado na figura majestática, onipotente, onisciente do presidente De Gaulle e os valores burgueses fabricados pela prosperidade do após-guerra.
Os anarquistas de 98 que agora agridem o líder de 68 estão incomodados com a espetacularização mediática e a trivialização dos mais puros ideais políticos por eles encarnados. Incomodam-se com as novas posições de Cohn-Bendit, mas o que repudiam efetivamente é o seu vedetismo, a civilização dos talk-shows e a simplificação cultural dela decorrente.
Os valores burgueses de hoje são os valores anti-burgueses de ontem. A burguesia é esperta: o segredo de sua sobrevivência está na sua capacidade de absorver e neutralizar tudo o que pode ameaçá-la. Algumas presunções tidas como politicamente corretas na pauta contemporânea foram gestadas no turbilhão das revoltas dos anos 60-70 nos dois lados do Atlântico e na costa leste do Pacífico.
Agora aparecem visivelmente emboloradas diante das novas circunstâncias e necessidades. Caso da melancólica reaparição dos Rolling Stones, mercantilizada como um Michael Jackson, sem o contrapeso de rebeldia original, sua marca.
A maconha, então apresentada como passaporte espiritual para viagens além do materialismo e das convenções, perdida a inocência, mostra sua verdadeira catadura: uma das iscas do narcotráfico, peça primária do crime organizado. A proposta original de alienação e resistência, três décadas e centenas de estudos psiquiátricos depois, revela sua face deformadora e letal.
A revolução sexual foi barrada por sua antítese, a Aids. Modos, modas, atitudes, linguagens e comportamentos se transformaram em peças de museu por força da velocidade com que foram adotados. Ou da inconseqüência da sua adoção. A única plataforma de 68 que permanece intacta e consistente talvez seja a do feminismo que, na realidade, começou muito antes -as sufragistas do final do século passado.
A verdadeira mensagem contida na torta jogada em Cohn-Bendit não invalida os postulados de Maio de 68 ou seus personagens. Lembra apenas a imanência, o automatismo do processo dialético e a inevitável troca de papéis que provoca. A "pâtisserie" francesa deveria ter sido jogada no imobilista Frances Fukuyama com sua lengalenga de que a queda do Muro de Berlim marca o fim da História e dos conflitos.
Exemplo disso é a convicção da falência do Estado Forte, hoje universal. A questão transcende à discussão sobre privatismo ou estatismo na economia como querem aqueles que se consideram os donos do espólio de 68. O Estado como o entendia o conservador Charles De Gaulle ou o "progressista" Lyndon Johnson (última geração do New Deal de Roosevelt) era uma instância providencial, portanto infalível, portanto tendente ao imobilismo.
Uma sociedade efetivamente participativa, disposta a pagar o preço da solidariedade e da ação coletiva ordenada, tem condições de ocupar criativamente os vazios deixados pelos poderes centrais. Cenário que em 68 seria impossível desenhar com tanta precisão.
Ao contrário dos franceses, temos o privilégio de assistir ao vivo e em cores à transfiguração da rebeldia de 1968 na pessoa de Vladimir Palmeira, o candidato da ala extremada do PT fluminense. O carismático líder do movimento estudantil carioca que foi capaz de assustar a ditadura obrigando-a a se assumir abertamente como ditadura, agora, com a sua rebelião perante a direção nacional do PT, cria o primeiro grande cisma no seu partido. Revela, ao mesmo tempo, o desperdício e a exorbitância do inconformismo radical.
Imoderação e intemperança fazem tanto mal à saúde como a acomodação (isso vale para criaturas, partidos, nações). Uma tortinha inofensiva e bem humorada podem corrigir tanto uma como outra. Se for saborosa, melhor.



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