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CARLOS HEITOR CONY
Das preferências de acordo com a idade
Perguntaram certa vez a
um dos irmãos Campos
(sempre os confundo, embora sejam diferentes) por que ele não
falava de certos poetas, como
Baudelaire e outros, fixando-se
quase sempre nos mesmos de
sempre, mais ligados à sua concepção do fato poético. Ele respondeu simplesmente: "Como homem, tenho direito de fazer minhas opções" (estou citando de
memória, é possível que pergunta
e resposta tivessem outras palavras, mas o sentido foi esse mesmo).
A sinceridade do poeta é louvável e, no caso dele, coerente. Mas
já tive surpresas estranhas, que
direi estranhíssimas, no departamento de preferências artísticas e
culturais. Uma delas foi quando
entrevistei Francisco Mignone,
por ocasião de seus 80 anos. Desde criancinha ouvia suas "Valsas
de Esquina" e acompanhei sua
ópera "Memórias de um Sargento
de Milícias" -espero que seja um
dia gravada. É uma obra-prima
que nada fica a dever aos melhores trabalhos de Carlos Gomes e
Villa-Lobos.
Perguntei ao maestro sobre suas
preferências musicais. Com aquele jeito boêmio, que nem a idade
conseguira poluir, Mignone me
surpreendeu. Disse que, até os 30
anos, sempre que lhe faziam esta
pergunta, ele respondia que havia
apenas um músico no mundo: Johann Sebastian Bach. O resto era
uma variação do lixo.
Dos 30 aos 70 anos, ele suavizou
o radicalismo. Elegeu Beethoven
seu músico predileto, mas admitia que Bach e Vivaldi também
mereciam subir ao pódio.
Dos 70 anos em diante, ou seja,
na última década, com a chegada
da maturidade, com sua obra
praticamente realizada, ele decidira "perder a vergonha" e ser
sincero mesmo, sem se preocupar
com o que os outros poderiam
pensar dele. E, com uma risada,
sentou ao piano e tocou a valsa
da Musseta, exagerando nos compassos destacados.
"Com 80 anos, descubro que o
único que amei realmente foi
Puccini. Talvez ele não tenha feito música. Fez mais."
Bem, qualquer teórico de arte
poderia culpar a idade, a deterioração dos neurônios, até mesmo a
decadência da velhice, como responsáveis pela preferência do
maestro, que inverteu a tradicional pirâmide do gosto culturalmente correto. Mas será isso mesmo, apenas uma questão de decadência mental, de embotamento
da sensibilidade?
Passo de Francisco Mignone e
do setor musical para o que acontece comigo em matéria de Machado de Assis. Até os 40 anos,
quando alguém me perguntava
sobre o livro mais importante da
obra machadiana, eu dizia sem
titubear: "Dom Casmurro". E ficava admirado se me contestavam. Como poderia haver livro
melhor do que Bentinho tentando
escrever a história dos subúrbios?
E isso depois de pagar o túmulo
de seu filho, que ele queria bem
distante de si. Um filho que "era
perfeito desde os dias de sua concepção".
Um dia, me surpreendi com
mais idade e descobri que "Memórias Póstumas de Brás Cubas"
era bem superior ao "Dom Casmurro". Tive raiva de mim mesmo por não ter percebido isso, julguei-me um asno, uma toupeira.
Como podia ter passado tantos
anos sem perceber a maravilha
daquele delírio inicial, o impacto
daquela frase final ( "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria") ?
Novamente o tempo passou, e
cheguei, bem verdade que imerecidamente -ou merecidamente,
já que a idade é um castigo merecido-, aos 60 anos. Para comemorar a data redonda, reli durante um ano os livros que achava mais importantes, Flaubert e
Stendhal inteiros, Zola e Balzac,
Kafka, Joyce, Proust e Faulkner,
os grandes russos, o Fausto, na
tradução francesa de Nerval, o
Dante, que comecei a estudar no
seminário, estudo que até hoje
não completei, pois ainda nem saí
do "Purgatório".
Evidente que reli também os
brasileiros -e Machado em primeiríssimo lugar. Seria exagero
confessar que me decepcionei com
"Dom Casmurro", que achei Brás
Cubas um pouco pedante. Contudo, descobri que, desde criancinha, eu gostava mesmo era de
"Quincas Borba", que tecnicamente poderia ser a continuação
de Brás Cubas, mas com a vantagem de ser mais e melhor.
A criação de um sistema filosófico (Humanistas) funciona como
paródia dos pensamentos do cão
de Quincas Borba, que tem o mesmo nome do dono. Um dono louco e um cão lúcido -eis o romance perfeito, definitivo.
O resto cabe todo neste vácuo
entre a loucura e a lucidez, não
importa de que lado esteja o homem. "Ao vencedor, as batatas!"
-parece ser a frase mais conhecida do livro. Prefiro outra, que
passa pela cabeça de Quincas
Borba, o cão.
O cão que procura esquecer "a
memória das pancadas" e, numa
reflexão comprida sobre seu estado, constata que a vida não é
"completamente boa nem completamente má".
E Machado de Assis, reconhecendo que o pensamento é de um
cão e que um cão, em princípio,
deve pensar mais e melhor do que
um homem, admite que tudo não
passa de "uma poeira de idéias".
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