São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Das preferências de acordo com a idade

Perguntaram certa vez a um dos irmãos Campos (sempre os confundo, embora sejam diferentes) por que ele não falava de certos poetas, como Baudelaire e outros, fixando-se quase sempre nos mesmos de sempre, mais ligados à sua concepção do fato poético. Ele respondeu simplesmente: "Como homem, tenho direito de fazer minhas opções" (estou citando de memória, é possível que pergunta e resposta tivessem outras palavras, mas o sentido foi esse mesmo).
A sinceridade do poeta é louvável e, no caso dele, coerente. Mas já tive surpresas estranhas, que direi estranhíssimas, no departamento de preferências artísticas e culturais. Uma delas foi quando entrevistei Francisco Mignone, por ocasião de seus 80 anos. Desde criancinha ouvia suas "Valsas de Esquina" e acompanhei sua ópera "Memórias de um Sargento de Milícias" -espero que seja um dia gravada. É uma obra-prima que nada fica a dever aos melhores trabalhos de Carlos Gomes e Villa-Lobos.
Perguntei ao maestro sobre suas preferências musicais. Com aquele jeito boêmio, que nem a idade conseguira poluir, Mignone me surpreendeu. Disse que, até os 30 anos, sempre que lhe faziam esta pergunta, ele respondia que havia apenas um músico no mundo: Johann Sebastian Bach. O resto era uma variação do lixo.
Dos 30 aos 70 anos, ele suavizou o radicalismo. Elegeu Beethoven seu músico predileto, mas admitia que Bach e Vivaldi também mereciam subir ao pódio.
Dos 70 anos em diante, ou seja, na última década, com a chegada da maturidade, com sua obra praticamente realizada, ele decidira "perder a vergonha" e ser sincero mesmo, sem se preocupar com o que os outros poderiam pensar dele. E, com uma risada, sentou ao piano e tocou a valsa da Musseta, exagerando nos compassos destacados.
"Com 80 anos, descubro que o único que amei realmente foi Puccini. Talvez ele não tenha feito música. Fez mais."
Bem, qualquer teórico de arte poderia culpar a idade, a deterioração dos neurônios, até mesmo a decadência da velhice, como responsáveis pela preferência do maestro, que inverteu a tradicional pirâmide do gosto culturalmente correto. Mas será isso mesmo, apenas uma questão de decadência mental, de embotamento da sensibilidade?
Passo de Francisco Mignone e do setor musical para o que acontece comigo em matéria de Machado de Assis. Até os 40 anos, quando alguém me perguntava sobre o livro mais importante da obra machadiana, eu dizia sem titubear: "Dom Casmurro". E ficava admirado se me contestavam. Como poderia haver livro melhor do que Bentinho tentando escrever a história dos subúrbios? E isso depois de pagar o túmulo de seu filho, que ele queria bem distante de si. Um filho que "era perfeito desde os dias de sua concepção".
Um dia, me surpreendi com mais idade e descobri que "Memórias Póstumas de Brás Cubas" era bem superior ao "Dom Casmurro". Tive raiva de mim mesmo por não ter percebido isso, julguei-me um asno, uma toupeira. Como podia ter passado tantos anos sem perceber a maravilha daquele delírio inicial, o impacto daquela frase final ( "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria") ?
Novamente o tempo passou, e cheguei, bem verdade que imerecidamente -ou merecidamente, já que a idade é um castigo merecido-, aos 60 anos. Para comemorar a data redonda, reli durante um ano os livros que achava mais importantes, Flaubert e Stendhal inteiros, Zola e Balzac, Kafka, Joyce, Proust e Faulkner, os grandes russos, o Fausto, na tradução francesa de Nerval, o Dante, que comecei a estudar no seminário, estudo que até hoje não completei, pois ainda nem saí do "Purgatório".
Evidente que reli também os brasileiros -e Machado em primeiríssimo lugar. Seria exagero confessar que me decepcionei com "Dom Casmurro", que achei Brás Cubas um pouco pedante. Contudo, descobri que, desde criancinha, eu gostava mesmo era de "Quincas Borba", que tecnicamente poderia ser a continuação de Brás Cubas, mas com a vantagem de ser mais e melhor.
A criação de um sistema filosófico (Humanistas) funciona como paródia dos pensamentos do cão de Quincas Borba, que tem o mesmo nome do dono. Um dono louco e um cão lúcido -eis o romance perfeito, definitivo.
O resto cabe todo neste vácuo entre a loucura e a lucidez, não importa de que lado esteja o homem. "Ao vencedor, as batatas!" -parece ser a frase mais conhecida do livro. Prefiro outra, que passa pela cabeça de Quincas Borba, o cão.
O cão que procura esquecer "a memória das pancadas" e, numa reflexão comprida sobre seu estado, constata que a vida não é "completamente boa nem completamente má".
E Machado de Assis, reconhecendo que o pensamento é de um cão e que um cão, em princípio, deve pensar mais e melhor do que um homem, admite que tudo não passa de "uma poeira de idéias".


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