São Paulo, Quarta-feira, 09 de Junho de 1999
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MARCELO COELHO
O mundo começa a ter andares demais

Arnold Schwarzenegger, que começou a carreira cinematográfica como um huno brutamontes, faz questão atualmente de auxiliar entidades beneméritas e antifascistas, além de atuar, em alguns filmes, no papel de simpático pai de família.
O McDonald's, que junto com a Coca-Cola é a única empresa detentora de um símbolo capaz de apagar a foice e o martelo da memória européia, desistiu há tempos -no Brasil pelo menos- de destacar em seus anúncios aquele palhaço barulhento e agressivo, o Ronald.
A mudança é significativa: recentemente, o McDonald's optou por associar-se aos esforços de resistência vernacular e ao otimismo paciente, quase exausto, do professor Pasquale Cipro Neto; e, se os arcos amarelos do imenso M se impõem com certa violência à vista de qualquer cidadão, a rede de fast-food simpaticamente preferiu restaurar um casarão na avenida Paulista a demoli-lo para a construção de mais uma filial.
Mesmo a Blockbuster, cujo nome já parecia dizer tudo (arrasa-quarteirões), tem agido com relativa timidez em seu plano de nos entupir de titanics e máquinas mortíferas até o pescoço.
São as grandes empresas européias, e não as multinacionais americanas, que têm revelado certa insensibilidade, a meu ver, em sua estratégia publicitária. Sobre a Telefônica nem é preciso falar; a invasão da marca se deu sem aviso prévio, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Depois de recordes de reclamações no Procon, ela veio com anúncios irritantes, do tipo "dói no começo, mas você vai acabar gostando". Em seguida, a cidade se cobriu de cartazes com o número 15, sem nenhuma explicação, numa antiquíssima tática de despertar a curiosidade do público.
Quando finalmente estávamos todos prontos para a informação decisiva, quando o número 15 rompeu a espessa treva de nossos cérebros, notoriamente adversos à modernidade, a Telefônica veio nos dizer que o número 15 é o do prefixo a ser utilizado nas suas ligações interurbanas.
É como se, depois do problema, surgisse a solução. Que alívio! Um ator de cara séria, com certa credibilidade, apareceu entretanto na TV para refrear um pouco nossa incontida euforia. No anúncio da Telefônica, disse algo como "haverá problemas inicialmente". Bom, não é por falta de aviso que ficaremos descontentes.
Aliás, se não conseguirmos falar em absoluto pelo telefone, isso talvez seja uma vantagem. Conversas particulares, que não interessam a ninguém, podem sempre ser interceptadas se os telefones funcionarem direito -e o caso tenderia a ser explorado por uma imprensa malévola, que não aceita idéias óbvias como a de que um segredo deve ser secreto, e que o impublicável não deve ser publicado.
Mas voltando aos anúncios. O Ática Shopping, megalivraria que eu frequentava bastante, foi vendido à rede francesa Fnac. A publicidade foi enorme e a meu ver novamente invasiva. "Chegou Fnac. A maior loja de cultura e informação que o Brasil já viu."
Esse "que o Brasil já viu" é quase um erro de tradução; o que se pretendia dizer era: "A maior loja de cultura que vocês, brasileiros, já viram". O anúncio continua: "Você só vai acreditar mesmo se for até lá". O que, provavelmente, queria dizer o seguinte: "Nem nós estamos acreditando que fomos parar aí".
À famosa pergunta de Montesquieu ("Como é que alguém pode ser persa?"), a Fnac parece acrescentar um novo espanto: "Como é que vocês, brasileiros, podem ser consumidores?". Aliás, a pergunta valia bem um congresso.
"O mundo tem cinco andares", diz outro anúncio da Fnac. A fórmula é colossal. Mas o que encontrei na Fnac não foi o mundo, e é duvidoso dizer que se trata da "maior loja de cultura e informação" que este pobre país já conheceu.
Pois o espaço dedicado aos livros reduziu-se. Um andar foi ocupado por computadores e badulaques de informática; outro, por aparelhos de som e TV. Se é para levar as coisas nesses termos, a falência de G. Aronson viraria tragédia cultural.
O fim de uma megalivraria como a Ática certamente é menos grave do que uma falência como a de G. Aronson, mas sobre o primeiro fenômeno posso arriscar uma breve explicação.
Não é apenas que computadores façam mais sucesso do que livros. Acho que, no fundo, estamos passando para uma era de "consumo virtual". Ou seja, interessa menos o produto, que antigamente era comprado para ser usado, e sim as potencialidades (que nunca usaremos) do produto que compramos.
O computador novo talvez seja mais rápido ou mais bonito; o certo é que nunca usaremos um décimo de seus recursos. O mesmo vale para os canais de TV a cabo; já a TV por satélite oferece cento e tantos. Quero uma; nunca vou ver um centésimo das atrações. A Internet nos oferece, sem dúvida, o mundo. E a maioria das pessoas fica conversando com uns gatos-pingados na sala de chat.
De fato, o mundo começa a ter andares demais. O difícil é sair do rés-do-chão.


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