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MARCELO COELHO
O mundo começa a ter andares demais
Arnold Schwarzenegger, que
começou a carreira cinematográfica como um huno brutamontes, faz questão atualmente de auxiliar entidades beneméritas e antifascistas, além de
atuar, em alguns filmes, no papel de simpático pai de família.
O McDonald's, que junto com
a Coca-Cola é a única empresa
detentora de um símbolo capaz
de apagar a foice e o martelo da
memória européia, desistiu há
tempos -no Brasil pelo menos- de destacar em seus
anúncios aquele palhaço barulhento e agressivo, o Ronald.
A mudança é significativa:
recentemente, o McDonald's
optou por associar-se aos esforços de resistência vernacular e
ao otimismo paciente, quase
exausto, do professor Pasquale
Cipro Neto; e, se os arcos amarelos do imenso M se impõem
com certa violência à vista de
qualquer cidadão, a rede de
fast-food simpaticamente preferiu restaurar um casarão na
avenida Paulista a demoli-lo
para a construção de mais uma
filial.
Mesmo a Blockbuster, cujo
nome já parecia dizer tudo (arrasa-quarteirões), tem agido
com relativa timidez em seu
plano de nos entupir de titanics
e máquinas mortíferas até o
pescoço.
São as grandes empresas européias, e não as multinacionais americanas, que têm revelado certa insensibilidade, a
meu ver, em sua estratégia publicitária. Sobre a Telefônica
nem é preciso falar; a invasão
da marca se deu sem aviso prévio, como se fosse a coisa mais
natural do mundo.
Depois de recordes de reclamações no Procon, ela veio com
anúncios irritantes, do tipo
"dói no começo, mas você vai
acabar gostando". Em seguida,
a cidade se cobriu de cartazes
com o número 15, sem nenhuma explicação, numa antiquíssima tática de despertar a curiosidade do público.
Quando finalmente estávamos todos prontos para a informação decisiva, quando o número 15 rompeu a espessa treva
de nossos cérebros, notoriamente adversos à modernidade, a Telefônica veio nos dizer
que o número 15 é o do prefixo
a ser utilizado nas suas ligações
interurbanas.
É como se, depois do problema, surgisse a solução. Que alívio! Um ator de cara séria, com
certa credibilidade, apareceu
entretanto na TV para refrear
um pouco nossa incontida euforia. No anúncio da Telefônica, disse algo como "haverá
problemas inicialmente". Bom,
não é por falta de aviso que ficaremos descontentes.
Aliás, se não conseguirmos
falar em absoluto pelo telefone,
isso talvez seja uma vantagem.
Conversas particulares, que
não interessam a ninguém, podem sempre ser interceptadas
se os telefones funcionarem direito -e o caso tenderia a ser
explorado por uma imprensa
malévola, que não aceita idéias
óbvias como a de que um segredo deve ser secreto, e que o impublicável não deve ser publicado.
Mas voltando aos anúncios.
O Ática Shopping, megalivraria que eu frequentava bastante, foi vendido à rede francesa
Fnac. A publicidade foi enorme
e a meu ver novamente invasiva. "Chegou Fnac. A maior loja
de cultura e informação que o
Brasil já viu."
Esse "que o Brasil já viu" é
quase um erro de tradução; o
que se pretendia dizer era: "A
maior loja de cultura que vocês, brasileiros, já viram". O
anúncio continua: "Você só vai
acreditar mesmo se for até lá".
O que, provavelmente, queria
dizer o seguinte: "Nem nós estamos acreditando que fomos
parar aí".
À famosa pergunta de Montesquieu ("Como é que alguém
pode ser persa?"), a Fnac parece acrescentar um novo espanto: "Como é que vocês, brasileiros, podem ser consumidores?".
Aliás, a pergunta valia bem um
congresso.
"O mundo tem cinco andares", diz outro anúncio da
Fnac. A fórmula é colossal. Mas
o que encontrei na Fnac não foi
o mundo, e é duvidoso dizer
que se trata da "maior loja de
cultura e informação" que este
pobre país já conheceu.
Pois o espaço dedicado aos livros reduziu-se. Um andar foi
ocupado por computadores e
badulaques de informática;
outro, por aparelhos de som e
TV. Se é para levar as coisas
nesses termos, a falência de G.
Aronson viraria tragédia cultural.
O fim de uma megalivraria
como a Ática certamente é menos grave do que uma falência
como a de G. Aronson, mas sobre o primeiro fenômeno posso
arriscar uma breve explicação.
Não é apenas que computadores façam mais sucesso do
que livros. Acho que, no fundo,
estamos passando para uma
era de "consumo virtual". Ou
seja, interessa menos o produto, que antigamente era comprado para ser usado, e sim as
potencialidades (que nunca
usaremos) do produto que
compramos.
O computador novo talvez seja mais rápido ou mais bonito;
o certo é que nunca usaremos
um décimo de seus recursos. O
mesmo vale para os canais de
TV a cabo; já a TV por satélite
oferece cento e tantos. Quero
uma; nunca vou ver um centésimo das atrações. A Internet
nos oferece, sem dúvida, o
mundo. E a maioria das pessoas fica conversando com uns
gatos-pingados na sala de chat.
De fato, o mundo começa a
ter andares demais. O difícil é
sair do rés-do-chão.
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