São Paulo, sexta-feira, 09 de julho de 2004

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Novo filme de Allen, que pré-estréia, tem ator de "American Pie" como seu alter ego; diretor de "Igual a Tudo na Vida" trabalha com ídolos adolescentes; para ele, juventude é "analfabeta"

Feitiço do tempo

FIONA MORROW
DO ""THE INDEPENDENT"

Muito tempo atrás, na época em que era Deus, Woody Allen não dava entrevistas. Ele não precisava disso. Todo mundo o amava, e ele tinha um acordo de produção exclusivo que lhe garantia a liberdade de fazer qualquer filme que quisesse.
As coisas mudam. Hoje, Allen tem um contrato para um filme de cada vez e é obrigado a sair do isolamento que prefere para buscar seu ganha-pão lá fora, falando com a imprensa. Assim, agora que seus filmes se tornaram irrelevantes ou até derrisórios, ele passou a ser disponível.
Embora os papéis que escreve para si mesmo não reflitam o fato, Allen fará 70 anos em dezembro e está fisicamente um pouco frágil. David Dobel, seu personagem em ""Igual a Tudo na Vida", não poderia ser mais diferente dele próprio: um sujeito paranóico e esquentado, apaixonado por armas de fogo e que acredita piamente em seu direito de se defender.
Se Dobel soa pouco característico em termos de alter ego do diretor, é porque o papel de Woody -ou seja, o do neurótico apaixonado pelo jazz e azarado no amor- foi rejuvenescido na pele de Jerry (Jason Biggs), protegido de Dobel.
Allen demonstra desprezo pela simples idéia de que possa se importar com isso. ""Acho um erro tentar ser jovem", explica, em tom de superioridade. ""Os filmes feitos para jovens não são ótimos filmes, não são filmes reflexivos. São blockbusters com efeitos especiais. As comédias são burras, repletas de piadas de banheiro, nada sofisticadas. Essas são as coisas que os jovens gostam. Não os idolatro."
Não é difícil concordar com essa visão, mas uma pergunta se torna inevitável: por que ele escolheu o ator Jason Biggs, astro da série ""American Pie"? ""Eu nunca tinha ouvido falar em Jason quando o contratei", responde Woody, dando de ombros. ""Nunca vi "American Pie", acho que deve ser imbecil."
"Quando eu era mais jovem, minha geração não tinha paciência nem interesse por filmes imbecis. Os filmes que nos instigavam eram o novo trabalho de Truffaut, ou um Bergman, um Antonioni, um De Sica. Mas os jovens de hoje, mesmo os inteligentes, não conhecem Renoir, não conhecem Kurosawa. São analfabetos." Ele faz uma pausa, depois acrescenta, irritado: ""Parece que a única coisa que têm a seu favor é o fato de serem jovens".
E o que dizer, então, do fato de que seu próximo filme, ""Melinda and Melinda", ser estrelado por Will Ferrell e Amanda Peet? Não será essa uma artimanha astuta para atrair o público de menos de 30 anos aos cinemas, para ver seus filmes? ""Nunca faço filmes para jovens", ele garante. ""Não tenho um público jovem."
Boa parte do problema de ""Igual a Tudo na Vida" -e de grande parte dos trabalhos recentes de Allen- é sua misantropia. Os personagens femininos no filme mais recente -Amanda (a namorada de Jerry, interpretada por Christina Ricci) e sua mãe, Paula (Stockard Channing)- são criaturas manipuladoras, desagradáveis. Os personagens de Allen sempre foram repletos de neuroses, mas eram reconhecíveis como gente. Amanda e Paula não possuem nenhuma qualidade que as redima.
""Isso mesmo", diz Allen em tom de desafio. ""E está ótimo assim. Não sou obrigado a fazer personagens agradáveis. Ao longo dos anos, a maioria das mulheres que criei teve os melhores papéis e ganhou os Oscar. Nesse filme, Christina é promíscua, Jason é muito neurótico, e eu sou psicótico. Ninguém sobrevive."
Woody Allen pode ser visto como autor, mas opõe resistência total à idéia de que exista alguma progressão temática em seus filmes, que, insiste, não são mais do que uma sucessão de histórias divertidas. ""Quando termino um filme, sigo adiante e faço o próximo com a idéia que está na minha cabeça naquele momento, seja ela qual for", explica.
Existe algo de tático no argumento de Allen, entre outras razões porque, convenientemente, ele joga por terra a perspectiva de seus filmes serem discutidos como autobiografia -o que, com certeza, não seria descabido, em se tratando de um roteirista e diretor que geralmente também representa o papel principal.
Teria havido algum ""Dobel" na vida de Allen? Ele respira antes de responder. ""Sim", reconhece, falando com cuidado. ""Quando eu tinha 20 e poucos anos, conheci um homem mais velho e também muito louco, que já morreu. Ele tinha sido internado, e eu o achei muito brilhante. Quando eu falava com ele sobre literatura, vida, arte, mulheres, ele era muito coerente. Mas não conseguia conduzir sua própria vida."


Tradução Clara Allain


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