|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Um crime de lesa-pátria
Não sei bem como está a coisa, mas autoridades do ensino ou da educação, gente que em
nome do Estado mexe oficialmente com os currículos, com o
que deve ser ensinado ou não ensinado nas escolas de primeiro e
segundo graus, estão tirando a literatura da pauta escolar, reduzindo-a um corolário da cadeira
de português, não mais como matéria autônoma, específica, capaz
de formar licenciados, doutores e
mestres.
O argumento que volta e meia é
brandido pelos técnicos do setor é
que os alunos lêem pouco e mal e,
mesmo quando lêem, forçados
pelos professores, não entendem o
que estão lendo. Chegam a alegar
que o ensino da literatura é a besta negra das escolas, sobretudo no
primeiro grau, uma vez que os
alunos detestam a obrigação de
ler tal ou qual livro, fazer uma
dissertação sobre esse ou aquele
tema abordado por um dos autores selecionados pelos professores.
Vamos e venhamos, há casos
em que realmente os jovens estudantes abominam a leitura, preferindo matérias mais práticas,
que estão no ar, na TV, nos estádios, nas praças, nas festinhas, no
dia-a-dia da juventude que hoje
tem acesso à internet, ao DVD,
aos videogravadores.
Acontece que somos um país
chamado Brasil, onde a nossa história oficial está ligada, segue paralela à nossa história literária.
Desde Anchieta, é bom que se diga, que pertence igualmente tanto à nossa historiografia como às
nossas letras, sendo cronologicamente o primeiro autor (poemas,
cartas, dicionários) de qualquer
manual de literatura nacional.
Há povos espalhados pelo mundo que se formaram e firmaram
como povos guerreiros, povos de
navegantes, de comerciantes, povos místicos voltados para o fantástico, povos essencialmente religiosos, como na Índia ou no mundo islâmico, povos pragmatizados
pela técnica, em que o cidadão é
especializado em pintar o pára-lama esquerdo de um carro, mas
não sabe pintar o pára-lama direito, que requer outra técnica e
outro aprendizado, além de outra
vocação.
Para o bem ou para o mal, não
somos assim. Não escolhemos
nossas preferências, elas se formaram ao longo do tempo, condicionadas pelo nosso tipo de homem,
pela nossa terra, nossa paisagem,
nosso cheiro.
Podemos reconhecer que talvez
seja pejorativo o fato de tendermos à literatice, ao verbo pelo verbo, que nos tornou um país de
doutores, beletristas, bacharéis de
canudo, mas aos poucos estamos
despindo esse penduricalho de
gosto duvidoso e inútil e já formamos técnicos e gente especializada
em vários setores da cultura e da
ciência.
Contudo, não devemos jogar no
lixo uma das características fundamentais de nossa formação como povo. No campo e na cidade,
temos cantores primitivos que
nunca deixaram de expressar
nosso amor pelos versos, pelas rimas, pelas metáforas, pelo duplo
sentido, pela paródia, pelo discurso, por tudo aquilo que afinal faz
a matéria-prima de qualquer literatura, grande ou pequena não
importa.
Em Lübeck, na Alemanha, lá
em cima no Báltico, até hoje se
cultuam os navegadores da Liga
Hanseática, o lema da cidade,
inscrito nas pontes e muralhas
antigas. É o "navigare necesse
est", que muitos pensam que é
verso de Fernando Pessoa ou música de Caetano Veloso.
Queiramos ou não, somos um
povo comprometido com a literatura, não a literatura de Ph.D.
que esmiúça poetas e escritores
maiores, como Drummond, João
Cabral, Euclydes da Cunha ou
Machado de Assis. Em criança,
ouvimos de nossa mãe ou de nossas avós os versos de Casemiro de
Abreu (oh que saudades que eu
tenho da aurora da minha vida)
ou de Gonçalves Dias (minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá), ou mesmo de Castro Alves
(auriverde pendão da minha terra).
São versos, são citações que formam nossa alma, nosso sentimento como pessoa e como povo.
Já lembrei, há tempos, aquele episódio do desembarque aliado nas
praias da França. Para motivar
os resistentes franceses a lutar
contra a invasão, o Estado-Maior
aliado procurou uma senha que
servisse de faísca para mobilizar
todos os patriotas contra a ocupação estrangeira. Não apelaram
para o hino oficial do país, nem
para seus grandes pensadores como Descartes, Montaigne ou Pascal.
Foram buscar no boêmio Paul
Verlaine os versos que todos os
franceses aprendem nos primeiros anos de escola: "Les sanglots
longs des violons de l'automne,
blessent mon coeur d'une langueur monotone".
Retirar o ensino da literatura
das escolas é desfigurar a nossa
alma nacional, nosso gosto, nossa
memória. Evidente que devemos
levar adiante a formação das novas gerações, preparando-as para
os desafios da globalização, da
concorrência internacional, da
independência política, econômica, social e científica.
Mas, para isso, não podemos
cuspir no que temos de mais legítimo e gostoso, no patrimônio cultural que atravessou gerações.
Outro dia, na Academia Brasileira de Letras, homens de gerações
diversas, de formação até contraditória, ficaram comovidos quando Paulo Sérgio Rouanet, comemorando o centenário de Francisco Otaviano, lembrou aqueles
versos que aprendemos na escola:
"Quem passou pela vida em
branca nuvem e em plácido repouso adormeceu...".
Texto Anterior: DVD/lançamento: Lisbela e o Prisioneiro Próximo Texto: Música: Guitarrista japonês "invade" Ocidente Índice
|