São Paulo, sexta-feira, 09 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Um crime de lesa-pátria

Não sei bem como está a coisa, mas autoridades do ensino ou da educação, gente que em nome do Estado mexe oficialmente com os currículos, com o que deve ser ensinado ou não ensinado nas escolas de primeiro e segundo graus, estão tirando a literatura da pauta escolar, reduzindo-a um corolário da cadeira de português, não mais como matéria autônoma, específica, capaz de formar licenciados, doutores e mestres.
O argumento que volta e meia é brandido pelos técnicos do setor é que os alunos lêem pouco e mal e, mesmo quando lêem, forçados pelos professores, não entendem o que estão lendo. Chegam a alegar que o ensino da literatura é a besta negra das escolas, sobretudo no primeiro grau, uma vez que os alunos detestam a obrigação de ler tal ou qual livro, fazer uma dissertação sobre esse ou aquele tema abordado por um dos autores selecionados pelos professores.
Vamos e venhamos, há casos em que realmente os jovens estudantes abominam a leitura, preferindo matérias mais práticas, que estão no ar, na TV, nos estádios, nas praças, nas festinhas, no dia-a-dia da juventude que hoje tem acesso à internet, ao DVD, aos videogravadores.
Acontece que somos um país chamado Brasil, onde a nossa história oficial está ligada, segue paralela à nossa história literária. Desde Anchieta, é bom que se diga, que pertence igualmente tanto à nossa historiografia como às nossas letras, sendo cronologicamente o primeiro autor (poemas, cartas, dicionários) de qualquer manual de literatura nacional.
Há povos espalhados pelo mundo que se formaram e firmaram como povos guerreiros, povos de navegantes, de comerciantes, povos místicos voltados para o fantástico, povos essencialmente religiosos, como na Índia ou no mundo islâmico, povos pragmatizados pela técnica, em que o cidadão é especializado em pintar o pára-lama esquerdo de um carro, mas não sabe pintar o pára-lama direito, que requer outra técnica e outro aprendizado, além de outra vocação.
Para o bem ou para o mal, não somos assim. Não escolhemos nossas preferências, elas se formaram ao longo do tempo, condicionadas pelo nosso tipo de homem, pela nossa terra, nossa paisagem, nosso cheiro.
Podemos reconhecer que talvez seja pejorativo o fato de tendermos à literatice, ao verbo pelo verbo, que nos tornou um país de doutores, beletristas, bacharéis de canudo, mas aos poucos estamos despindo esse penduricalho de gosto duvidoso e inútil e já formamos técnicos e gente especializada em vários setores da cultura e da ciência.
Contudo, não devemos jogar no lixo uma das características fundamentais de nossa formação como povo. No campo e na cidade, temos cantores primitivos que nunca deixaram de expressar nosso amor pelos versos, pelas rimas, pelas metáforas, pelo duplo sentido, pela paródia, pelo discurso, por tudo aquilo que afinal faz a matéria-prima de qualquer literatura, grande ou pequena não importa.
Em Lübeck, na Alemanha, lá em cima no Báltico, até hoje se cultuam os navegadores da Liga Hanseática, o lema da cidade, inscrito nas pontes e muralhas antigas. É o "navigare necesse est", que muitos pensam que é verso de Fernando Pessoa ou música de Caetano Veloso.
Queiramos ou não, somos um povo comprometido com a literatura, não a literatura de Ph.D. que esmiúça poetas e escritores maiores, como Drummond, João Cabral, Euclydes da Cunha ou Machado de Assis. Em criança, ouvimos de nossa mãe ou de nossas avós os versos de Casemiro de Abreu (oh que saudades que eu tenho da aurora da minha vida) ou de Gonçalves Dias (minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá), ou mesmo de Castro Alves (auriverde pendão da minha terra).
São versos, são citações que formam nossa alma, nosso sentimento como pessoa e como povo. Já lembrei, há tempos, aquele episódio do desembarque aliado nas praias da França. Para motivar os resistentes franceses a lutar contra a invasão, o Estado-Maior aliado procurou uma senha que servisse de faísca para mobilizar todos os patriotas contra a ocupação estrangeira. Não apelaram para o hino oficial do país, nem para seus grandes pensadores como Descartes, Montaigne ou Pascal.
Foram buscar no boêmio Paul Verlaine os versos que todos os franceses aprendem nos primeiros anos de escola: "Les sanglots longs des violons de l'automne, blessent mon coeur d'une langueur monotone".
Retirar o ensino da literatura das escolas é desfigurar a nossa alma nacional, nosso gosto, nossa memória. Evidente que devemos levar adiante a formação das novas gerações, preparando-as para os desafios da globalização, da concorrência internacional, da independência política, econômica, social e científica.
Mas, para isso, não podemos cuspir no que temos de mais legítimo e gostoso, no patrimônio cultural que atravessou gerações. Outro dia, na Academia Brasileira de Letras, homens de gerações diversas, de formação até contraditória, ficaram comovidos quando Paulo Sérgio Rouanet, comemorando o centenário de Francisco Otaviano, lembrou aqueles versos que aprendemos na escola: "Quem passou pela vida em branca nuvem e em plácido repouso adormeceu...".



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