São Paulo, Sexta-feira, 09 de Julho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Proust e o jornalismo investigativo

Seria exagero considerar Marcel Proust o pai do jornalismo investigativo. Mal e porcamente, ele poderia ser rotulado de jornalista: colaborava nos jornais e revistas com regularidade, fazia artigos sobre assuntos geralmente amenos e, com mais assiduidade, mantinha o que hoje chamaríamos de ""coluna" social.
Deslumbrado com madames, cortesãs, nobres mais ou menos decaídos (alguns totalmente caídos), ele seria em todos os sentidos um jornalista medíocre se não fosse o romancista de gênio que escreveu o romance mais importante do século.
Um dos seus paradoxos foi exatamente esse deslumbramento pela vida social no que ela tinha de mais banal e ridícula. Mesmo no período que antecedeu sua morte, ele só saia de casa, coberto por pesados capotes, para levar a alguma redação uma notinha sobre a recepção de madame X ou o sarau da baronesa Y. Parecia um espectro, olheiras maiores do que o rosto, com milhões de gatos miando em seu peito de asmático, lá ia ele com a pequena nota sobre a toalete de fulana, o colar de sicrana, o bufê servido na ceia da embaixada do Ceilão.
Antes da fase final, quando sua colaboração na imprensa era quase diária, ele criou uma enquete que até hoje é conhecida como ""proustiana", que nada tem a ver com o adjetivo ""proustiano" que hoje serve para definir um gênero literário, por sinal, um dos mais nobres.
Não deixa de ser uma enquete investigativa, no sentido em que o conjunto de perguntas (a maioria banais) ajuda a composição do que agora podemos chamar de ""perfil". Sendo as perguntas as mesmas, fossem endereçadas a um general, a um banqueiro, a uma cantora ou a um escritor, com alguma boa vontade poderíamos considerar a proustiana como o primeiro modelo de investigação jornalística.
Bem ou mal tem sido copiada de diversas maneiras. Ciclicamente, uma revista ou jornal, com a falta de assunto generalizada, ressuscita a mesma série de perguntas que são respondidas com a habitual hipocrisia que faz parte dos alicerces de barro da condição humana.
No Rio dos anos 60 havia uma revista chamada ""Chuvisco", que enquanto durou fez algum sucesso com a proustiana. Mexendo em velhos recortes, outro dia descobri -com um pouco de remorso e muita vergonha- as respostas que dei à série de perguntas que não fazem justiça nem a Proust nem ao entrevistado, que no caso era eu. Eis:
1) Qual é para você o cúmulo da miséria? - Trabalhar.
2) Onde gostaria de viver? - Onde vivo.
3) Qual é o seu ideal de felicidade terrestre? - Não fazer nada.
4) Quais as faltas que merecem a sua indulgência? - As minhas.
5) Quais os heróis de romance que prefere? - Não prefiro nenhum herói de romance.
6) Qual o seu personagem histórico preferido? - Herodes.
7) Sua heroína na vida real? - Uma vizinha que toma banho de sol nua na varanda de seu apartamento.
8) Seu pintor preferido? - O Bastos, José Bastos, da ilha do Governador, que pinta barcos, velas abertas ao mar, pôr-do-sol etc.
9) Seu músico favorito? - O autor do ""Ciranda, Cirandinha".
10) Que qualidade prefere no homem? - A distância.
11) Que qualidade prefere na mulher? - Aquela.
12) Sua ocupação preferida? - Não fazer nada.
13) Que gostaria de ser? - Tenor.
14) Qual o principal traço do seu caráter? - Não procuro ter caráter.
15) O que mais aprecia em seus amigos? - O fato de serem meus amigos.
16) Seu principal defeito? - Todos os meus defeitos são principais.
17) Seu sonho de felicidade terrestre? - Ser cavaleiro da Ordem Equestre de São Silvestre.
18) Qual seria para você a maior desgraça? - Acreditar em qualquer coisa.
19) Que cor prefere? - Verde.
20) Que flor mais aprecia? - Não aprecio flores.
21) Que pássaro mais aprecia? - Não aprecio pássaros.
22) Seus autores preferidos em prosa? - Alguns.
23) Seus poetas preferidos? - Não prefiro nenhum poeta.
24) Seus heróis e heroínas na vida real? - A vida real não tem heróis nem heroínas.
25) O que mais detesta? - O trabalho e algumas virtudes.
26) O fato militar que mais admirou? - A minha dispensa do Exército.
27) Como gostaria de morrer? - Não gostaria de morrer.
28) Sua divisa? - Não ter nada. Dever muito. O resto deixar para os pobres.
A mesma revista publicou proustianas com vultos mais ilustres e austeros. Lembro de um ministro que tinha por divisa: ""Ad astra per castra". Uma atriz da época prometia ""fazer o bem ainda que receba o mal". No fato militar que mais admiraram estão relacionadas batalhas da antiguidade (Salamina, Termópilas e Farsália) e a do Riachuelo, essa provavelmente de algum nacionalista fanático.
Em tempo: ninguém precisa se alarmar com a minha extravagante ambição de ser tenor. Posso cometer vários crimes, incendiar cidades, degolar criancinhas, profanar cadáveres, mas cantar uma ária, esse crime não o farei.


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