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CARLOS HEITOR CONY
Proust e o jornalismo investigativo
Seria exagero considerar Marcel
Proust o pai do jornalismo investigativo. Mal e porcamente, ele
poderia ser rotulado de jornalista:
colaborava nos jornais e revistas
com regularidade, fazia artigos
sobre assuntos geralmente amenos e, com mais assiduidade,
mantinha o que hoje chamaríamos de ""coluna" social.
Deslumbrado com madames,
cortesãs, nobres mais ou menos
decaídos (alguns totalmente caídos), ele seria em todos os sentidos
um jornalista medíocre se não fosse o romancista de gênio que escreveu o romance mais importante do século.
Um dos seus paradoxos foi exatamente esse deslumbramento pela vida social no que ela tinha de
mais banal e ridícula. Mesmo no
período que antecedeu sua morte,
ele só saia de casa, coberto por pesados capotes, para levar a alguma redação uma notinha sobre a
recepção de madame X ou o sarau da baronesa Y. Parecia um espectro, olheiras maiores do que o
rosto, com milhões de gatos miando em seu peito de asmático, lá ia
ele com a pequena nota sobre a
toalete de fulana, o colar de sicrana, o bufê servido na ceia da embaixada do Ceilão.
Antes da fase final, quando sua
colaboração na imprensa era
quase diária, ele criou uma enquete que até hoje é conhecida como ""proustiana", que nada tem a
ver com o adjetivo ""proustiano"
que hoje serve para definir um gênero literário, por sinal, um dos
mais nobres.
Não deixa de ser uma enquete
investigativa, no sentido em que o
conjunto de perguntas (a maioria
banais) ajuda a composição do
que agora podemos chamar de
""perfil". Sendo as perguntas as
mesmas, fossem endereçadas a
um general, a um banqueiro, a
uma cantora ou a um escritor,
com alguma boa vontade poderíamos considerar a proustiana
como o primeiro modelo de investigação jornalística.
Bem ou mal tem sido copiada
de diversas maneiras. Ciclicamente, uma revista ou jornal, com
a falta de assunto generalizada,
ressuscita a mesma série de perguntas que são respondidas com a
habitual hipocrisia que faz parte
dos alicerces de barro da condição
humana.
No Rio dos anos 60 havia uma
revista chamada ""Chuvisco", que
enquanto durou fez algum sucesso com a proustiana. Mexendo
em velhos recortes, outro dia descobri -com um pouco de remorso e muita vergonha- as respostas que dei à série de perguntas
que não fazem justiça nem a
Proust nem ao entrevistado, que
no caso era eu. Eis:
1) Qual é para você o cúmulo da
miséria? - Trabalhar.
2) Onde gostaria de viver? -
Onde vivo.
3) Qual é o seu ideal de felicidade terrestre? - Não fazer nada.
4) Quais as faltas que merecem
a sua indulgência? - As minhas.
5) Quais os heróis de romance
que prefere? - Não prefiro nenhum herói de romance.
6) Qual o seu personagem histórico preferido? - Herodes.
7) Sua heroína na vida real? -
Uma vizinha que toma banho de
sol nua na varanda de seu apartamento.
8) Seu pintor preferido? - O
Bastos, José Bastos, da ilha do Governador, que pinta barcos, velas
abertas ao mar, pôr-do-sol etc.
9) Seu músico favorito? - O
autor do ""Ciranda, Cirandinha".
10) Que qualidade prefere no
homem? - A distância.
11) Que qualidade prefere na
mulher? - Aquela.
12) Sua ocupação preferida? -
Não fazer nada.
13) Que gostaria de ser? - Tenor.
14) Qual o principal traço do
seu caráter? - Não procuro ter
caráter.
15) O que mais aprecia em seus
amigos? - O fato de serem meus
amigos.
16) Seu principal defeito? - Todos os meus defeitos são principais.
17) Seu sonho de felicidade terrestre? - Ser cavaleiro da Ordem
Equestre de São Silvestre.
18) Qual seria para você a
maior desgraça? - Acreditar em
qualquer coisa.
19) Que cor prefere? - Verde.
20) Que flor mais aprecia? -
Não aprecio flores.
21) Que pássaro mais aprecia?
- Não aprecio pássaros.
22) Seus autores preferidos em
prosa? - Alguns.
23) Seus poetas preferidos? -
Não prefiro nenhum poeta.
24) Seus heróis e heroínas na vida real? - A vida real não tem
heróis nem heroínas.
25) O que mais detesta? - O
trabalho e algumas virtudes.
26) O fato militar que mais admirou? - A minha dispensa do
Exército.
27) Como gostaria de morrer?
- Não gostaria de morrer.
28) Sua divisa? - Não ter nada. Dever muito. O resto deixar
para os pobres.
A mesma revista publicou
proustianas com vultos mais ilustres e austeros. Lembro de um ministro que tinha por divisa: ""Ad
astra per castra". Uma atriz da
época prometia ""fazer o bem ainda que receba o mal". No fato militar que mais admiraram estão
relacionadas batalhas da antiguidade (Salamina, Termópilas e
Farsália) e a do Riachuelo, essa
provavelmente de algum nacionalista fanático.
Em tempo: ninguém precisa se
alarmar com a minha extravagante ambição de ser tenor. Posso
cometer vários crimes, incendiar
cidades, degolar criancinhas, profanar cadáveres, mas cantar uma
ária, esse crime não o farei.
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