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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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"ANACOLUTO DO PRINCÍPIO AO FIM"

Estréia em romance do gaúcho Walter Galvani registra luta contra Alzheimer

Drama dilui conflito em modorrento cotidiano

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Anacoluto Camargo Neves, protagonista e narrador do primeiro romance do gaúcho Walter Galvani, não é flor que se cheire. Ruralista, latifundiário, não se envergonha de sua alienação diante dos fatos históricos nem procura ocultar suas posições reacionárias. Ao contrário de Paulo Honório -herói do livro "São Bernardo", de Graciliano Ramos-, um "self-made man" afinal, Anacoluto herdou toda a sua riqueza. Vive principalmente do arrendamento de suas terras, ou, como ele mesmo define, não passa de um "gigolô de vaca".
Sua rotina consiste em levantar, tomar café, andar um pouco, voltar para o almoço, tirar uma sesta, ler, prosear com um ou outro, escrever seu diário, dormir. Se pudesse, não faria nada. Agrada-lhe citar o pai de Elisa Doolittle, personagem de Bernard Shaw: "Viver sem trabalhar é possível, com um bocadinho de sorte, só". Passado dos 50 anos, nem habita mais o campo. Décadas antes abandonou o passado estancieiro de seu pai, o coronel Neves, e foi morar em Pelotas (RS).
Vive com a mulher, Rosa Pigafé, que se refugiou em definitivo no casarão de Anacoluto após desafiar o pai e, mais para a frente, com a sogra. De fato, a autobiografia que ele escreve, segundo a personagem, serve a dois intuitos: provar a sinceridade de seu amor por Rosa e registrar as circunstâncias de sua trajetória antes que elas se percam nas brumas do esquecimento. Anacoluto decide escrever seu relato quando descobre que, assim como a mãe de Rosa, sofre de mal de Alzheimer, doença degenerativa que implica perda de memória.
Há muito sabemos que não devemos acreditar em tudo o que afirmam os personagens. Anacoluto fala de seu amor a Rosa, mas não deixa de dar suas escapadas com a criada e com uma senhora alemã das redondezas. Até aí, tudo bem. É possível amar e trair, como atestam as peças de Nelson Rodrigues. Mas o maior ardil conjurado pelo herói diz respeito ao próprio nome.
Anacoluto, não custa lembrar, é uma figura de regência. O personagem encarrega-se de fornecer a definição: "Figura de construção gramatical que consiste na ruptura da ordem lógica da frase, de tal forma que um termo ou oração fique sem enlace sintático com os demais". O latifundiário gosta de reiterar que, à maneira do nome que lhe foi dado, costuma "romper a lógica de uma situação".
Ora, não há personagem mais linear do que Anacoluto. Ele quase nunca age, apenas reage (por vezes) às circunstâncias. Sua trajetória é de uma previsibilidade atroz. Não há surpresa, não há mudança, não há quebra de expectativa. Anacoluto deixa-se levar. A trama por ele narrada apresenta poucos conflitos, pois mal se esboça, o drama já se dilui no modorrento cotidiano.
O único conflito mais palpável, razão de ser do relato, é explicitado mais ou menos no centro da narrativa: a luta do personagem contra a doença que ameaça roubar-lhe as lembranças. Anacoluto teme sobretudo a fase derradeira do mal, em que a identidade se dissolve, em que não poderá mais saber quem é. Por isso sua insistência em definir-se, em assinalar a identidade por meio do nome -o qual, estranhamente, não o marca pelo que ele apresenta de continuidade, mas pelo que há de ruptura. E que maior ruptura poderia haver do que a doença que irrompe com seus lapsos, suas incoerências, o desconcerto que causa?
O romance apresenta alguns problemas de andamento narrativo, o mais flagrante dos quais talvez seja o do esfacelamento do herói. A demasiada rapidez com que ele ocorre pode ser interpretada como sintoma da doença, mas não deixa de causar no leitor a sensação de coisa interrompida de forma abrupta. Um anacoluto, quem sabe?, por fim.


Anacoluto do Princípio ao Fim
    Autor: Walter Galvani Editora: Record Quanto: R$ 30 (240 págs.)



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