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"ANACOLUTO DO PRINCÍPIO AO FIM"
Estréia em romance do gaúcho Walter Galvani registra luta contra Alzheimer
Drama dilui conflito em modorrento cotidiano
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Anacoluto Camargo Neves, protagonista e narrador
do primeiro romance do gaúcho
Walter Galvani, não é flor que se
cheire. Ruralista, latifundiário,
não se envergonha de sua alienação diante dos fatos históricos
nem procura ocultar suas posições reacionárias. Ao contrário de
Paulo Honório -herói do livro
"São Bernardo", de Graciliano
Ramos-, um "self-made man"
afinal, Anacoluto herdou toda a
sua riqueza. Vive principalmente
do arrendamento de suas terras,
ou, como ele mesmo define, não
passa de um "gigolô de vaca".
Sua rotina consiste em levantar,
tomar café, andar um pouco, voltar para o almoço, tirar uma sesta,
ler, prosear com um ou outro, escrever seu diário, dormir. Se pudesse, não faria nada. Agrada-lhe
citar o pai de Elisa Doolittle, personagem de Bernard Shaw: "Viver sem trabalhar é possível, com
um bocadinho de sorte, só". Passado dos 50 anos, nem habita
mais o campo. Décadas antes
abandonou o passado estancieiro
de seu pai, o coronel Neves, e foi
morar em Pelotas (RS).
Vive com a mulher, Rosa Pigafé,
que se refugiou em definitivo no
casarão de Anacoluto após desafiar o pai e, mais para a frente,
com a sogra. De fato, a autobiografia que ele escreve, segundo a
personagem, serve a dois intuitos:
provar a sinceridade de seu amor
por Rosa e registrar as circunstâncias de sua trajetória antes que
elas se percam nas brumas do esquecimento. Anacoluto decide
escrever seu relato quando descobre que, assim como a mãe de Rosa, sofre de mal de Alzheimer,
doença degenerativa que implica
perda de memória.
Há muito sabemos que não devemos acreditar em tudo o que
afirmam os personagens. Anacoluto fala de seu amor a Rosa, mas
não deixa de dar suas escapadas
com a criada e com uma senhora
alemã das redondezas. Até aí, tudo bem. É possível amar e trair,
como atestam as peças de Nelson
Rodrigues. Mas o maior ardil
conjurado pelo herói diz respeito
ao próprio nome.
Anacoluto, não custa lembrar, é
uma figura de regência. O personagem encarrega-se de fornecer a
definição: "Figura de construção
gramatical que consiste na ruptura da ordem lógica da frase, de tal
forma que um termo ou oração fique sem enlace sintático com os
demais". O latifundiário gosta de
reiterar que, à maneira do nome
que lhe foi dado, costuma "romper a lógica de uma situação".
Ora, não há personagem mais
linear do que Anacoluto. Ele quase nunca age, apenas reage (por
vezes) às circunstâncias. Sua trajetória é de uma previsibilidade
atroz. Não há surpresa, não há
mudança, não há quebra de expectativa. Anacoluto deixa-se levar. A trama por ele narrada apresenta poucos conflitos, pois mal
se esboça, o drama já se dilui no
modorrento cotidiano.
O único conflito mais palpável,
razão de ser do relato, é explicitado mais ou menos no centro da
narrativa: a luta do personagem
contra a doença que ameaça roubar-lhe as lembranças. Anacoluto
teme sobretudo a fase derradeira
do mal, em que a identidade se
dissolve, em que não poderá mais
saber quem é. Por isso sua insistência em definir-se, em assinalar
a identidade por meio do nome
-o qual, estranhamente, não o
marca pelo que ele apresenta de
continuidade, mas pelo que há de
ruptura. E que maior ruptura poderia haver do que a doença que
irrompe com seus lapsos, suas incoerências, o desconcerto que
causa?
O romance apresenta alguns
problemas de andamento narrativo, o mais flagrante dos quais talvez seja o do esfacelamento do herói. A demasiada rapidez com que
ele ocorre pode ser interpretada
como sintoma da doença, mas
não deixa de causar no leitor a
sensação de coisa interrompida
de forma abrupta. Um anacoluto,
quem sabe?, por fim.
Anacoluto do Princípio ao Fim
Autor: Walter Galvani
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (240 págs.)
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