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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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"PROVA CONTRÁRIA"

Bonassi relata vidas traumatizadas

DO COLUNISTA DA FOLHA

"Este livro foi feito para sugerir uma encenação", afirma o colunista da Folha Fernando Bonassi, 40, na dedicatória de "Prova Contrária". De fato, essa novela escrita na forma de diálogos e dividida em cenas oscila constantemente entre a narrativa em prosa e o texto teatral (o que inclui dois capítulos estruturados na forma de jogral).
A ação envolve apenas uma mulher e um homem que conversam num apartamento. Entre eles, interpõe-se a voz de um narrador que descreve os objetos em cena, os movimentos e o estado de espírito das duas personagens. As intervenções desse narrador são como "rubricas", aquelas instruções que os autores de peças colocam no texto cênico como indicação de montagem para diretores e atores.
Esse cruzamento de gêneros não é estranho à obra de Bonassi, romancista e contista com várias incursões pela dramaturgia (a mais recente foi a magnífica adaptação de "Woyzeck", de Georg Büchner). Mas a ambiguidade formal de "Prova Contrária" possui uma razão mais profunda.
A novela gira em torno do reencontro de uma mulher com o marido desaparecido durante o regime militar. Quando a trama se inicia, ela acaba de se mudar para um apartamento novo, comprado com o dinheiro da indenização paga pelo governo a familiares de vítimas da repressão política.
Ainda entre os caixotes da mudança, ela tem um pequeno momento de êxtase doméstico, a discreta satisfação de quem afinal dá um passo importante na superação do passado. Porém essa felicidade clandestina (que Bonassi descreve com uma sensibilidade que certamente deve muito a Clarice Lispector) é quebrada com a súbita aparição do marido.
A partir daí, as ambiguidades do texto começam a justificar a hesitação estilística entre o drama e a narrativa. A mulher não sabe se conversa com um fantasma ou se o marido de fato ressurgiu depois de tanto tempo, pois ele irrompe em cena com uma brutalidade que só é possível representar literariamente graças à concretude corpórea que a ação dramática propicia.
Tudo aquilo que havia sido silenciado, que ficara sem verbalização (um passado de violência política e de traumas afetivos recalcados), retorna agora como pesadelo. Num dado momento, a mulher diz: "Nós, que vivemos pra ver aquelas e essas coisas, não devíamos ter opinião. Devíamos deixar que os outros imaginassem como. Que inventassem tudo. Que mentissem se fosse o caso. Que nos desafiassem, nos ultrajassem. Não devíamos nos preocupar. O silêncio sempre pode mais".
Quem sofre demais, parece nos dizer ela, transfere aos outros a tarefa de reatar os fios da memória e desiste de fazer justiça aos mortos: só lhe resta "dar tempo ao tédio dos assassinos", resignar-se a reparações financeiras que anestesiam o desejo de vingança. Entretanto, esses cadáveres sem sepultura cedo ou tarde voltam a nos assombrar -e o acerto de contas com o passado passa a ser uma necessidade emocional e um imperativo moral.
Por aí se vê como "Prova Contrária" articula de maneira hábil as dimensões afetiva e ética, ficcional e histórica. Graças ao raro talento que Bonassi tem para escrever diálogos (superando a diferença entre linguagens oral e escrita que caracteriza a língua portuguesa do Brasil), a novela passa sem artificialismos dos desejos, dos rancores e das lembranças conjugais para as desilusões da política e para a caixa-preta da história.
O livro de Bonassi é um comovente relato de vidas traumatizadas ("Primeiro me roubam a sua vida, depois você me rouba sua morte", diz a mulher; "Nós não estávamos preparados pra sobreviver a isso tudo", diz o homem). Mas é também o retrato de um país em que "o conforto é mais forte que o incômodo", que se recusa a mexer nas chagas do passado -um espectro que, como o desaparecido político da obra, retorna cotidianamente na forma da injustiça e da violência.
(MANUEL DA COSTA PINTO)


Prova Contrária
     Autor: Fernando Bonassi Editora: Objetiva Quanto: R$ 19,90 (98 págs.)



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