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"PROVA CONTRÁRIA"
Bonassi relata vidas traumatizadas
DO COLUNISTA DA FOLHA
"Este livro foi feito para sugerir uma encenação",
afirma o colunista da Folha Fernando Bonassi, 40, na dedicatória
de "Prova Contrária". De fato, essa novela escrita na forma de diálogos e dividida em cenas oscila
constantemente entre a narrativa
em prosa e o texto teatral (o que
inclui dois capítulos estruturados
na forma de jogral).
A ação envolve apenas uma mulher e um homem que conversam
num apartamento. Entre eles, interpõe-se a voz de um narrador
que descreve os objetos em cena,
os movimentos e o estado de espírito das duas personagens. As intervenções desse narrador são como "rubricas", aquelas instruções
que os autores de peças colocam
no texto cênico como indicação
de montagem para diretores e
atores.
Esse cruzamento de gêneros
não é estranho à obra de Bonassi,
romancista e contista com várias
incursões pela dramaturgia (a
mais recente foi a magnífica adaptação de "Woyzeck", de Georg
Büchner). Mas a ambiguidade
formal de "Prova Contrária" possui uma razão mais profunda.
A novela gira em torno do reencontro de uma mulher com o marido desaparecido durante o regime militar. Quando a trama se
inicia, ela acaba de se mudar para
um apartamento novo, comprado com o dinheiro da indenização
paga pelo governo a familiares de
vítimas da repressão política.
Ainda entre os caixotes da mudança, ela tem um pequeno momento de êxtase doméstico, a discreta satisfação de quem afinal dá
um passo importante na superação do passado. Porém essa felicidade clandestina (que Bonassi
descreve com uma sensibilidade
que certamente deve muito a Clarice Lispector) é quebrada com a
súbita aparição do marido.
A partir daí, as ambiguidades
do texto começam a justificar a
hesitação estilística entre o drama
e a narrativa. A mulher não sabe
se conversa com um fantasma ou
se o marido de fato ressurgiu depois de tanto tempo, pois ele irrompe em cena com uma brutalidade que só é possível representar
literariamente graças à concretude corpórea que a ação dramática
propicia.
Tudo aquilo que havia sido silenciado, que ficara sem verbalização (um passado de violência
política e de traumas afetivos recalcados), retorna agora como pesadelo. Num dado momento, a
mulher diz: "Nós, que vivemos
pra ver aquelas e essas coisas, não
devíamos ter opinião. Devíamos
deixar que os outros imaginassem
como. Que inventassem tudo.
Que mentissem se fosse o caso.
Que nos desafiassem, nos ultrajassem. Não devíamos nos preocupar. O silêncio sempre pode
mais".
Quem sofre demais, parece nos
dizer ela, transfere aos outros a tarefa de reatar os fios da memória e
desiste de fazer justiça aos mortos: só lhe resta "dar tempo ao tédio dos assassinos", resignar-se a
reparações financeiras que anestesiam o desejo de vingança. Entretanto, esses cadáveres sem sepultura cedo ou tarde voltam a
nos assombrar -e o acerto de
contas com o passado passa a ser
uma necessidade emocional e um
imperativo moral.
Por aí se vê como "Prova Contrária" articula de maneira hábil
as dimensões afetiva e ética, ficcional e histórica. Graças ao raro
talento que Bonassi tem para escrever diálogos (superando a diferença entre linguagens oral e escrita que caracteriza a língua portuguesa do Brasil), a novela passa
sem artificialismos dos desejos,
dos rancores e das lembranças
conjugais para as desilusões da
política e para a caixa-preta da
história.
O livro de Bonassi é um comovente relato de vidas traumatizadas ("Primeiro me roubam a sua
vida, depois você me rouba sua
morte", diz a mulher; "Nós não
estávamos preparados pra sobreviver a isso tudo", diz o homem).
Mas é também o retrato de um
país em que "o conforto é mais
forte que o incômodo", que se recusa a mexer nas chagas do passado -um espectro que, como o
desaparecido político da obra, retorna cotidianamente na forma
da injustiça e da violência.
(MANUEL DA COSTA PINTO)
Prova Contrária
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Objetiva Quanto: R$ 19,90 (98 págs.)
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