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CRÍTICA
Um caleidoscópio de idéias
RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA
Tive de ler em quatro dias o
que levou dez anos para produzir e publicar. Não creio que seja esse o melhor método de digerir as 500 páginas com as 49 suculentas entrevistas que traçam a
evolução do Mais! desde 1992. Este segundo tomo inclui gente como E. O. Wilson e Paulo Vanzolini em ciência, Habermas e Derrida em filosofia, Furtado, Bobbio,
Galbraith, Florestan, Bourdieu,
Faoro em política e economia,
Lévy-Strauss e Darcy Ribeiro em
antropologia, Ginzburg, Evaldo
Cabral de Melo, Alencastro, Antonio Candido em história.
O título "Memórias do Presente" é explicado no prefácio de
Adriano Schwartz como decorrência do caráter de formação
dessas entrevistas "históricas",
que rememoram uma vida toda
ou esclarecem de que modo se desenvolveu uma idéia ou obra.
É possível entendê-las dessa forma. Contudo, a imagem que mais
me ocorreu foi a do caledoscópio.
A cada movimento de mão para
um lado ou outro, o olho surpreende figura inesperada, formada pelos mesmíssimos elementos da anterior, mas rearrumados de ponto de vista distinto.
Mais que memória, evocação de
algo completo e acabado, o livro é
o mundo em movimento perpétuo, um "work in progress", uma
"construção em curso". Daí a variedade infinita de perspectivas e
interpretações, que se renovam e
se contradizem constantemente.
Tal qual no caledoscópio, o fascínio, o encantamento, provêm
da combinação do brilho e da cor
com o movimento, a inesgotável
diversidade da experiência humana, a capacidade de criar idéias
novas e surpreendentes quando
se começava a temer que tudo já
havia sido pensado e dito. Lembrei do prazer que sentia no ginásio ao folhear as velhas antologias
da F.T.D. ou os volumes azuis do
"Tesouro da Juventude", lendo
um poema de Gonçalves Dias durante uma aula chata, pulando para um canto de Eça ou uma carta
de Mário de Andrade ou até
-acredite, leitor, não é tão abominável como parece - um discurso gongórico do velho Rui
Barbosa, o "Adeus a Machado de
Assis", momento alto da língua.
"Veja os jornais, veja os suplementos culturais dos jornais!",
exclama, a certa altura, FHC, a fim
de provar, na entrevista, que a discussão político-cultural no Brasil
é mais ampla que no passado. De
fato, nos EUA, na França, os jornais não têm mais suplementos
culturais, só cadernos de resenhas. O que sobrou é, ou a revista
para especialista ou a rotina do
noticiário. No Brasil, país de "instrução restrita", como dizia Oliveira Lima, onde é escasso o público para revistas técnicas, o suplemento tem de conciliar o dever
de vanguarda (conforme ocorreu
com o concretismo) com o de informar e instruir população autodidata, ávida por aprender.
O livro cumpre esse papel. Suas
melhores entrevistas são as que
não se perdem nos emaranhados
metodológicos. As que não apelam apenas para os frequentadores do Departamento de Filosofia
da USP, mas se dirigem a você e a
mim, leitores medianos ou, como
quer Millôr, a todos aqueles cujo
problema é que nossa ignorância
é geral, não especializada. Melhor
ainda é quando, além de clara e
abrangente de toda uma vida-obra na sua inteireza, a entrevista
desvenda, atrás da máscara intelectual, um rosto humano. O convencional seria dizer que isso não
tem importância, o que conta não
é o autor, mas a obra. Sejamos
sinceros, para nós, de ignorância
geral, o que nos atrai é o humano,
as idéias nos interessam mais se
percebemos como se relacionam
com a vida de gente como a gente.
O ideal, portanto, é quando a
entrevista consegue realizar sua
difícil promessa, que é de harmonizar a confissão autobiográfica, a
crítica do pensamento e a conversa fluída e límpida. Essa mágica
ocorre quando é bom o astral do
entrevistador com o do entrevistado, sem bajulação nem agressão, quando ambos se preocupam
em mostrar ao leitor a floresta,
não as árvores individuais. São
muitos esses momentos, iluminados às vezes por lampejos tocantes de sinceridade e recusa de pedantismo, de integridade e modéstia, como, entre outras, nas de
Florestan Fernandes, Evaldo Cabral, Bento Prado, Enzensberger,
Newton da Costa.
Este último, criador de uma lógica nova, a paraconsistência, eu
nem suspeitava que existisse. Pairando em alturas que jamais atingiu, o sábio brasileiro tem a rara
honestidade de admitir que, de
Derrida, Foucault, Lefort, leu
muito pouco. Lamenta faltar-lhe
o dom e a inquietação para essas
coisas, confessa com candura que
quase não lê jornais. Ocuparia
muito do pouco tempo que têm
para sua paixão: a física e a matemática em que está mergulhado.
Seu mundo nada tem a ver com
o meu. No entanto, por um fugaz
instante, a entrevista permitiu que
nos encontrássemos pelo milagre
da linguagem. Tal milagre repetiu-se comigo, uma e muitas vezes. Aprendi enormemente sobre
autores de que nunca tinha ouvido falar ou só conhecia de nome.
Saí da leitura querendo saber
mais e, para isso, a obra oferece
notas e referências bibliográficas.
Se tivesse mais espaço, falaria
sobre o que me agradou nas diversas entrevistas. Discutiria também problemas que me interpelaram como o de indagar, ao ler
nossos filósofos, se as idéias estariam ainda "fora do lugar". Parafraseando da Costa, digo apenas:
"O que posso fazer? A vida -
aqui, o espaço- é curto, a gente
não tem tempo de estudar tudo".
Basta-me, assim, recomendar vivamente que leiam este livro. Ao
terminar, tenho a certeza de que
dirão o mesmo que respondeu o
mítico líder sindical Samuel
Gompers, desafiado a resumir em
poucas palavras o que, afinal, desejava o sindicalismo americano e
ele se limitou a dizer: "Mais!"
Artes do Conhecimento
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e foi ministro da Fazenda do
governo Itamar Franco
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