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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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CRÍTICA

Um caleidoscópio de idéias

RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA

Tive de ler em quatro dias o que levou dez anos para produzir e publicar. Não creio que seja esse o melhor método de digerir as 500 páginas com as 49 suculentas entrevistas que traçam a evolução do Mais! desde 1992. Este segundo tomo inclui gente como E. O. Wilson e Paulo Vanzolini em ciência, Habermas e Derrida em filosofia, Furtado, Bobbio, Galbraith, Florestan, Bourdieu, Faoro em política e economia, Lévy-Strauss e Darcy Ribeiro em antropologia, Ginzburg, Evaldo Cabral de Melo, Alencastro, Antonio Candido em história.
O título "Memórias do Presente" é explicado no prefácio de Adriano Schwartz como decorrência do caráter de formação dessas entrevistas "históricas", que rememoram uma vida toda ou esclarecem de que modo se desenvolveu uma idéia ou obra.
É possível entendê-las dessa forma. Contudo, a imagem que mais me ocorreu foi a do caledoscópio. A cada movimento de mão para um lado ou outro, o olho surpreende figura inesperada, formada pelos mesmíssimos elementos da anterior, mas rearrumados de ponto de vista distinto. Mais que memória, evocação de algo completo e acabado, o livro é o mundo em movimento perpétuo, um "work in progress", uma "construção em curso". Daí a variedade infinita de perspectivas e interpretações, que se renovam e se contradizem constantemente.
Tal qual no caledoscópio, o fascínio, o encantamento, provêm da combinação do brilho e da cor com o movimento, a inesgotável diversidade da experiência humana, a capacidade de criar idéias novas e surpreendentes quando se começava a temer que tudo já havia sido pensado e dito. Lembrei do prazer que sentia no ginásio ao folhear as velhas antologias da F.T.D. ou os volumes azuis do "Tesouro da Juventude", lendo um poema de Gonçalves Dias durante uma aula chata, pulando para um canto de Eça ou uma carta de Mário de Andrade ou até -acredite, leitor, não é tão abominável como parece - um discurso gongórico do velho Rui Barbosa, o "Adeus a Machado de Assis", momento alto da língua.
"Veja os jornais, veja os suplementos culturais dos jornais!", exclama, a certa altura, FHC, a fim de provar, na entrevista, que a discussão político-cultural no Brasil é mais ampla que no passado. De fato, nos EUA, na França, os jornais não têm mais suplementos culturais, só cadernos de resenhas. O que sobrou é, ou a revista para especialista ou a rotina do noticiário. No Brasil, país de "instrução restrita", como dizia Oliveira Lima, onde é escasso o público para revistas técnicas, o suplemento tem de conciliar o dever de vanguarda (conforme ocorreu com o concretismo) com o de informar e instruir população autodidata, ávida por aprender.
O livro cumpre esse papel. Suas melhores entrevistas são as que não se perdem nos emaranhados metodológicos. As que não apelam apenas para os frequentadores do Departamento de Filosofia da USP, mas se dirigem a você e a mim, leitores medianos ou, como quer Millôr, a todos aqueles cujo problema é que nossa ignorância é geral, não especializada. Melhor ainda é quando, além de clara e abrangente de toda uma vida-obra na sua inteireza, a entrevista desvenda, atrás da máscara intelectual, um rosto humano. O convencional seria dizer que isso não tem importância, o que conta não é o autor, mas a obra. Sejamos sinceros, para nós, de ignorância geral, o que nos atrai é o humano, as idéias nos interessam mais se percebemos como se relacionam com a vida de gente como a gente.
O ideal, portanto, é quando a entrevista consegue realizar sua difícil promessa, que é de harmonizar a confissão autobiográfica, a crítica do pensamento e a conversa fluída e límpida. Essa mágica ocorre quando é bom o astral do entrevistador com o do entrevistado, sem bajulação nem agressão, quando ambos se preocupam em mostrar ao leitor a floresta, não as árvores individuais. São muitos esses momentos, iluminados às vezes por lampejos tocantes de sinceridade e recusa de pedantismo, de integridade e modéstia, como, entre outras, nas de Florestan Fernandes, Evaldo Cabral, Bento Prado, Enzensberger, Newton da Costa.
Este último, criador de uma lógica nova, a paraconsistência, eu nem suspeitava que existisse. Pairando em alturas que jamais atingiu, o sábio brasileiro tem a rara honestidade de admitir que, de Derrida, Foucault, Lefort, leu muito pouco. Lamenta faltar-lhe o dom e a inquietação para essas coisas, confessa com candura que quase não lê jornais. Ocuparia muito do pouco tempo que têm para sua paixão: a física e a matemática em que está mergulhado.
Seu mundo nada tem a ver com o meu. No entanto, por um fugaz instante, a entrevista permitiu que nos encontrássemos pelo milagre da linguagem. Tal milagre repetiu-se comigo, uma e muitas vezes. Aprendi enormemente sobre autores de que nunca tinha ouvido falar ou só conhecia de nome. Saí da leitura querendo saber mais e, para isso, a obra oferece notas e referências bibliográficas.
Se tivesse mais espaço, falaria sobre o que me agradou nas diversas entrevistas. Discutiria também problemas que me interpelaram como o de indagar, ao ler nossos filósofos, se as idéias estariam ainda "fora do lugar". Parafraseando da Costa, digo apenas: "O que posso fazer? A vida - aqui, o espaço- é curto, a gente não tem tempo de estudar tudo". Basta-me, assim, recomendar vivamente que leiam este livro. Ao terminar, tenho a certeza de que dirão o mesmo que respondeu o mítico líder sindical Samuel Gompers, desafiado a resumir em poucas palavras o que, afinal, desejava o sindicalismo americano e ele se limitou a dizer: "Mais!"


Artes do Conhecimento
    
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e foi ministro da Fazenda do governo Itamar Franco


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