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NELSON ASCHER
Trabalhos de desamor perdidos
Ao partir para lutar em
Tróia, Odisseu deixara em
Ítaca, além de sua mulher, Penélope, e seu filho, Telêmaco, um filhote de cachorro chamado Argos. Após dez anos de guerra e
mais dez de peripécias, ele, mudado pela idade, regressa em segredo à ilha natal para pegar de surpresa seus rivais e retomar o trono. Entre os poucos que o reconhecem está precisamente o cão
que, velhíssimo e moribundo, sente o cheiro do dono com o qual,
duas décadas antes, convivera alguns meses, e morre em seguida.
Não há como exagerar a pungência desse episódio que, para
mim, supera a passagem do herói
pela ilha da feiticeira Circe, sua
descida aos infernos e até o momento em que, já no palácio, ele
se revela ao encordoar o arco que
mais ninguém conseguia dobrar.
A reação do animal mostra não
tanto, como sugeriram Adorno e
Horkheimer em "A Dialética do
Esclarecimento" (1947), o protagonista da "Odisséia" cruzando a
linha que separa o universo mítico do mundo desencantado,
quanto uma sensibilidade que, de
tão moderna, nos torna contemporâneos de um autor (ou autores) que viveu três milênios atrás.
Durante a conversa central de
"O Pai Goriot" (1835) de Balzac, o
misterioso Vautrin explica ao jovem e bem-intencionado Eugène
de Rastignac, filho de uma família empobrecida, que o curso de
direito e uma carreira como magistrado de Província jamais lhe
permitiriam realizar sua ambição de ingressar nas altas rodas
parisienses. Mas é somente com a
morte do velho Goriot, no final
emocionante do livro, que, livrando-se das últimas ilusões de juventude, o protagonista assume a
agressividade e o cinismo necessários para alcançar suas metas.
Depois do enterro e ainda no
Père Lachaise, "Rastignac, ficando a sós, se encaminhou para o alto do cemitério e viu Paris tortuosamente estendida ao longo de
ambas as margens do Sena, (...) lá
onde vivia a alta sociedade na
qual desejara penetrar. Lançando
sobre essa colméia ruidosa um
olhar que parecia de antemão lhe
extrair o mel, proferiu estas palavras desafiadoras: - Agora, é entre
nós dois!"
Cenas assim, o leitor não esquece. Pois não é sempre que se encontra uma descrição deliciosamente perceptiva como, em "O
Vermelho e o Negro" (1831) de
Stendhal, a das tribulações e
aprendizado de Julien Sorel no seminário, ou um começo tão matematicamente exato como o de
"Ana Karênina" (1876) de Tolstói
("Todas as famílias felizes são
iguais, mas as infelizes o são cada
qual à sua maneira."). Trechos
arrepiantes, como o de Guimarães Rosa falando, em "Grande
Sertão: Veredas" (1956), dos jagunços que afiavam seus dentes à
faca, ou o do iugoslavo Ivo Andric
relatando, em "A Ponte sobre o
Drina" (1959), as minúcias de um
empalamento, são raros.
Nem por isso romances menores
deixam de apresentar algo memorável tal qual a frase de abertura de "O Zero e o Infinito"
(1940) de Arthur Koestler ("A
porta bateu atrás de Rubashov.")
que, sem desperdiçar uma sílaba,
coloca-nos imediatamente no
cárcere onde transcorrerá a ação,
ou os parágrafos finais de "Parque Gorky" nos quais Martin
Cruz Smith, o escritor do thriller,
descreve o inspetor russo Arkady
Renko cumprindo sua missão ao
soltar das jaulas as zibelinas que
o vilão contrabandeara da União
Soviética.
Apesar de tais prazeres e revelações, confesso que, terminada a
adolescência, virei um péssimo e
preguiçoso freqüentador de ficção. Um conto de Bocaccio, Maupassant ou Dalton Trevisan não
me assusta. Mas um sólido calhamaço, mesmo se assinado por
Proust, Joyce ou pelos mestres russos, excede as energias que me
restam. O cinema (não, pelo
amor de Deus, o de arte) e a história satisfazem minha fome ocasional de narrativa. Ler trabalhos
historiográficos me dá também a
sensação lisonjeira de ser um cidadão responsável.
O problema, contudo, não se resume à preguiça. Por um lado, o
que aprendi lendo poesia, atividade que envolve sopesar palavras individuais, discernir a geometria das frases, acompanhar a
elaboração de cada imagem, não
é humanamente aplicável à fruição de 500 páginas de prosa. Por
outro, ler romances depende de
habilidades cuja manutenção requer exercício constante. A principal, adquirida na infância com
a ajuda de livros ilustrados, histórias em quadrinhos e, hoje em
dia, com o utilíssimo "leia o livro,
veja o filme", consiste na tradução automática da palavra escrita em seqüências de imagens
mentais. Na sua ausência, "Moby
Dick" (1851) se converte menos no
terrível cetáceo do que num
amontoado de celulose e anilinas.
Tentando reencontrar as habilidades perdidas, em vez de me
entranhar num clássico qualquer,
consumo de quando em quando
um livro reconhecidamente sem
qualidades. O da semana passada foi um best-seller de Michael
Chrichton, "Devoradores de Mortos" (1976), que serviu de base a
um filme igualmente medíocre,
"O 13º Guerreiro" (1999). Qual a
utilidade de um tamanho trabalho perdido de desamor?
Bom, há duas maneiras fundamentais de saber se um livro é de
fato bom: porque os pais, professores, amigos ou críticos o asseguraram, ou porque se dispõe de
uma experiência pessoal com outros que, embora ruins, fornecem
um contraste qualitativo. Se o primeiro caminho é o mais fácil,
quem não teve a oportunidade de
se enjoar, por exemplo, de Harold
Robbins ou Jacqueline Susann,
tampouco se lembrará claramente das razões que talvez o tenham
levado a se deslumbrar com Dostoiévski.
A alguns, os de paladar sensível,
a subliteratura causa apenas
náuseas. No caso daqueles que estão fora de forma, porém, um romancezinho insosso pode, com
sorte, voltar a lhes despertar o
apetite esquecido por algo melhor.
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