São Paulo, segunda-feira, 09 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Trabalhos de desamor perdidos

Ao partir para lutar em Tróia, Odisseu deixara em Ítaca, além de sua mulher, Penélope, e seu filho, Telêmaco, um filhote de cachorro chamado Argos. Após dez anos de guerra e mais dez de peripécias, ele, mudado pela idade, regressa em segredo à ilha natal para pegar de surpresa seus rivais e retomar o trono. Entre os poucos que o reconhecem está precisamente o cão que, velhíssimo e moribundo, sente o cheiro do dono com o qual, duas décadas antes, convivera alguns meses, e morre em seguida.
Não há como exagerar a pungência desse episódio que, para mim, supera a passagem do herói pela ilha da feiticeira Circe, sua descida aos infernos e até o momento em que, já no palácio, ele se revela ao encordoar o arco que mais ninguém conseguia dobrar. A reação do animal mostra não tanto, como sugeriram Adorno e Horkheimer em "A Dialética do Esclarecimento" (1947), o protagonista da "Odisséia" cruzando a linha que separa o universo mítico do mundo desencantado, quanto uma sensibilidade que, de tão moderna, nos torna contemporâneos de um autor (ou autores) que viveu três milênios atrás.
Durante a conversa central de "O Pai Goriot" (1835) de Balzac, o misterioso Vautrin explica ao jovem e bem-intencionado Eugène de Rastignac, filho de uma família empobrecida, que o curso de direito e uma carreira como magistrado de Província jamais lhe permitiriam realizar sua ambição de ingressar nas altas rodas parisienses. Mas é somente com a morte do velho Goriot, no final emocionante do livro, que, livrando-se das últimas ilusões de juventude, o protagonista assume a agressividade e o cinismo necessários para alcançar suas metas.
Depois do enterro e ainda no Père Lachaise, "Rastignac, ficando a sós, se encaminhou para o alto do cemitério e viu Paris tortuosamente estendida ao longo de ambas as margens do Sena, (...) lá onde vivia a alta sociedade na qual desejara penetrar. Lançando sobre essa colméia ruidosa um olhar que parecia de antemão lhe extrair o mel, proferiu estas palavras desafiadoras: - Agora, é entre nós dois!"
Cenas assim, o leitor não esquece. Pois não é sempre que se encontra uma descrição deliciosamente perceptiva como, em "O Vermelho e o Negro" (1831) de Stendhal, a das tribulações e aprendizado de Julien Sorel no seminário, ou um começo tão matematicamente exato como o de "Ana Karênina" (1876) de Tolstói ("Todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada qual à sua maneira."). Trechos arrepiantes, como o de Guimarães Rosa falando, em "Grande Sertão: Veredas" (1956), dos jagunços que afiavam seus dentes à faca, ou o do iugoslavo Ivo Andric relatando, em "A Ponte sobre o Drina" (1959), as minúcias de um empalamento, são raros.
Nem por isso romances menores deixam de apresentar algo memorável tal qual a frase de abertura de "O Zero e o Infinito" (1940) de Arthur Koestler ("A porta bateu atrás de Rubashov.") que, sem desperdiçar uma sílaba, coloca-nos imediatamente no cárcere onde transcorrerá a ação, ou os parágrafos finais de "Parque Gorky" nos quais Martin Cruz Smith, o escritor do thriller, descreve o inspetor russo Arkady Renko cumprindo sua missão ao soltar das jaulas as zibelinas que o vilão contrabandeara da União Soviética.
Apesar de tais prazeres e revelações, confesso que, terminada a adolescência, virei um péssimo e preguiçoso freqüentador de ficção. Um conto de Bocaccio, Maupassant ou Dalton Trevisan não me assusta. Mas um sólido calhamaço, mesmo se assinado por Proust, Joyce ou pelos mestres russos, excede as energias que me restam. O cinema (não, pelo amor de Deus, o de arte) e a história satisfazem minha fome ocasional de narrativa. Ler trabalhos historiográficos me dá também a sensação lisonjeira de ser um cidadão responsável.
O problema, contudo, não se resume à preguiça. Por um lado, o que aprendi lendo poesia, atividade que envolve sopesar palavras individuais, discernir a geometria das frases, acompanhar a elaboração de cada imagem, não é humanamente aplicável à fruição de 500 páginas de prosa. Por outro, ler romances depende de habilidades cuja manutenção requer exercício constante. A principal, adquirida na infância com a ajuda de livros ilustrados, histórias em quadrinhos e, hoje em dia, com o utilíssimo "leia o livro, veja o filme", consiste na tradução automática da palavra escrita em seqüências de imagens mentais. Na sua ausência, "Moby Dick" (1851) se converte menos no terrível cetáceo do que num amontoado de celulose e anilinas.
Tentando reencontrar as habilidades perdidas, em vez de me entranhar num clássico qualquer, consumo de quando em quando um livro reconhecidamente sem qualidades. O da semana passada foi um best-seller de Michael Chrichton, "Devoradores de Mortos" (1976), que serviu de base a um filme igualmente medíocre, "O 13º Guerreiro" (1999). Qual a utilidade de um tamanho trabalho perdido de desamor?
Bom, há duas maneiras fundamentais de saber se um livro é de fato bom: porque os pais, professores, amigos ou críticos o asseguraram, ou porque se dispõe de uma experiência pessoal com outros que, embora ruins, fornecem um contraste qualitativo. Se o primeiro caminho é o mais fácil, quem não teve a oportunidade de se enjoar, por exemplo, de Harold Robbins ou Jacqueline Susann, tampouco se lembrará claramente das razões que talvez o tenham levado a se deslumbrar com Dostoiévski.
A alguns, os de paladar sensível, a subliteratura causa apenas náuseas. No caso daqueles que estão fora de forma, porém, um romancezinho insosso pode, com sorte, voltar a lhes despertar o apetite esquecido por algo melhor.


Texto Anterior: Música: Após desfalque, DJ italiana toca em SP
Próximo Texto: Panorâmica - Grátis: Orquestra de Budapeste toca no São Bento
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.