São Paulo, Segunda-feira, 09 de Agosto de 1999
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FERNANDO GABEIRA
Crack, a trajetória da cocaína dos pobres

Chegam dos Estados Unidos quatro novos livros sobre política de drogas. Deveriam ter chegado antes, mas a amazon.com é rápida na cobrança e lenta na entrega.
Dois deles se referem apenas à maconha e são trabalhos destinados a desmontar preconceitos contra a Cannabis. É uma velha história, à qual vão se acrescentando alguns dados novos e pesquisas. Os títulos são: "Marijuana, not Guilty as Charged", de David R. Ford (Good Press), e "Marijuana Miths, Marijuana Facts", de Lynn Zimmer e John P. Morgan (The Lindsmith Center).
Um terceiro trabalho trata da questão mais geral da política norte-americana, e o título é bastante sugestivo: "Drug Crazy, How We Got into This Mess and How We Can Get out", de Mike Gray (Randon House).
Finalmente, creio que o livro que mais pode contribuir com o debate brasileiro no momento é "Crack in America, Demon Drugs and Social Justice", editado por Graig Reinarman e Harry G. Levine (University of California Press). Há pouca informação sobre o tema no Brasil.
O livro norte-americano reúne, além dos editores, mais uma dezena de colaboradores, que estudaram o assunto a fundo, nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. A América que mencionam no título é a América do Norte, mas não vamos implicar com detalhes. O trabalho é amplo e sério. Começa analisando a política de drogas nos Estados Unidos e, sobretudo, a condição social dos usuários.
Os chineses que foram construir estradas de ferro nos EUA gostavam de ópio e o tema veio à tona quando, já concluído o trabalho, vagavam ameaçando o emprego dos trabalhadores brancos.
A maconha sempre esteve associada aos mexicanos. No início, a tendência era apontar sua relação com crimes bárbaros cometidos por pessoas que a fumavam.
Depois, não se falou mais na agressividade que supostamente despertava, mas sim na passividade e inapetência para o trabalho e estudo.
Esse salto, de um extremo a outro, revela que a percepção de uma droga está quase sempre comprometida pela visão que certas camadas sociais têm das outras.
Os consumidores de crack são fumantes de cocaína. Até aí, nada demais, exceto o fato de que são consumidores de cocaína situados na base da pirâmide social. O crack, nos bairros negros e latinos, representa não apenas uma fuga da miserável realidade, mas também a busca de sobrevivência econômica e, sobretudo, de sentido para a existência.
A política repressiva desenvolvida pelos Estados Unidos, com suas repercussões no Brasil, onde o tema vai caindo aos poucos no colo dos generais, não chega a se preocupar seriamente com a inclusão dessas pessoas na sociedade, mas sim em estigmatizá-las e puni-las.
Uma análise do comportamento da mídia, entre 86 e 92, mostra que ela, de fato, se integrou na guerra contra as drogas. A mídia sempre buscou os experts que contribuíam para criar um certo pavor antidroga, mesmo que, para alcançar tal objetivo, tivessem que sustentar falsas generalizações. Dizem que, numa guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. Isso vale também para a guerra contra as drogas.
Em março de 86, a "Newsweek", em matéria intitulada "Garotos e Cocaína", apresentou, sem nenhum ceticismo, entrevista com um expert que dizia simplesmente que o crack era a droga que viciava mais instantaneamente em toda a história humana.
Em 1990, a "Newsweek" escrevia: "Não diga aos garotos, mas há um pequeno e sujo segredo sobre o crack: tal como as outras drogas, está sendo usado por muita gente que não se torna viciada com o uso".
O interessante no livro é a constatação de que o uso do crack produziu um grande impacto negativo na população mais pobre. Os autores mesmo antecipam a pergunta: "Se o crack fez mal a tanta gente, por que se incomodar com as táticas repressivas e a construção de uma atmosfera de pavor?". Simplesmente porque essas táticas agravam os problemas, ao invés de atenuá-los.
As sugestões estão na parte final do livro, intitulada: "Da Proibição Punitiva à Redução dos Males". A seção é aberta com uma frase de Gramsci, embora seja bom lembrar que os autores não são de esquerda: "A crise consiste no fato de que o velho já morreu e o novo ainda não pode nascer: nesse interregno, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos". Para Graig Reinarman e Harry G. Levine, autores deste texto específico, a frase é válida para a política norte-americana de drogas, que, sobretudo depois dos 80, tem se tornado ineficaz, cara e contraproducente.
Na verdade, a aterrissagem do crack na sociedade norte-americana (não seria também o caso brasileiro?) revela dois sintomas mórbidos: o crescimento do desemprego e da pobreza. No princípio, o sucesso da droga se deveu principalmente ao fato de oferecer uma saída artificial para o desespero e a pobreza nas grandes cidades.
A resposta das autoridades, com a prisão em massa dessa parte da população, só serviu para jogá-la ainda mais embaixo na sua infeliz trajetória.
Os autores escolheram o termo "proibição punitiva" porque acham que há outras formas de proibição. As alternativas existem, mas foram estigmatizadas como intelectual e moralmente escandalosas pelo antigo czar antidrogas William Bennet. Os adversários da política eram os suspeitos de sempre: intelectuais libertários, gente de esquerda. Mas a crítica tem se ampliado para o campo dos pensadores "respeitáveis".
Já em 86, numa reunião nacional de prefeitos, o representante de Baltimore pedia alternativas, inclusive a descriminalização. Políticos negros constataram o óbvio: a diferença de penas entre os vendedores de cocaína e os vendedores de crack. Uma droga de brancos e uma droga de negros acabava se revelando, na análise dessas sentenças, com dois pesos e duas medidas.
Tudo isso parece muito norte-americano. Mas poucos sabem que mais de 70 % dos traficantes presos no Brasil usam defensor público, pois não têm dinheiro para advogado. O tráfico de drogas, que supõe tanta articulação e tanto dinheiro, não é capaz sequer de pagar advogados. A resposta é muito simples: são os pobres, e possivelmente os negros (os dados de nosso relatório não especificam esse aspecto racial), os que ocupam as cadeias por causa da venda de drogas.
A política norte-americana tem grande peso no Brasil. Mas seria ridículo atribuir a eles a responsabilidade pelos nossos erros.
Historiadores modernos têm revelado que o atraso nem sempre é uma imposição que vem de fora, mas uma opção das próprias camadas dominantes.
Em vez de gastar tanto tempo nesses debates, em que sempre há um delegado, um pastor ou um pai de usuário, vou mergulhar na produção norte-americana. Vai chegar o momento em que o debate será menos emocional, aí, quem sabe, poderemos dar um passo adiante, independente dos norte-americanos, que desde os anos 20 estão perdidos numa cruzada sem horizontes.







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