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FERNANDO GABEIRA
Crack, a trajetória da cocaína dos pobres
Chegam dos Estados Unidos
quatro novos livros sobre política
de drogas. Deveriam ter chegado
antes, mas a amazon.com é rápida na cobrança e lenta na entrega.
Dois deles se referem apenas à
maconha e são trabalhos destinados a desmontar preconceitos
contra a Cannabis. É uma velha
história, à qual vão se acrescentando alguns dados novos e pesquisas. Os títulos são: "Marijuana, not Guilty as Charged", de
David R. Ford (Good Press), e
"Marijuana Miths, Marijuana
Facts", de Lynn Zimmer e John P.
Morgan (The Lindsmith Center).
Um terceiro trabalho trata da
questão mais geral da política
norte-americana, e o título é bastante sugestivo: "Drug Crazy,
How We Got into This Mess and
How We Can Get out", de Mike
Gray (Randon House).
Finalmente, creio que o livro
que mais pode contribuir com o
debate brasileiro no momento é
"Crack in America, Demon Drugs
and Social Justice", editado por
Graig Reinarman e Harry G. Levine (University of California
Press). Há pouca informação sobre o tema no Brasil.
O livro norte-americano reúne,
além dos editores, mais uma dezena de colaboradores, que estudaram o assunto a fundo, nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. A América que mencionam
no título é a América do Norte,
mas não vamos implicar com detalhes. O trabalho é amplo e sério.
Começa analisando a política de
drogas nos Estados Unidos e, sobretudo, a condição social dos
usuários.
Os chineses que foram construir
estradas de ferro nos EUA gostavam de ópio e o tema veio à tona
quando, já concluído o trabalho,
vagavam ameaçando o emprego
dos trabalhadores brancos.
A maconha sempre esteve associada aos mexicanos. No início, a
tendência era apontar sua relação com crimes bárbaros cometidos por pessoas que a fumavam.
Depois, não se falou mais na
agressividade que supostamente
despertava, mas sim na passividade e inapetência para o trabalho e estudo.
Esse salto, de um extremo a outro, revela que a percepção de
uma droga está quase sempre
comprometida pela visão que certas camadas sociais têm das outras.
Os consumidores de crack são
fumantes de cocaína. Até aí, nada
demais, exceto o fato de que são
consumidores de cocaína situados na base da pirâmide social. O
crack, nos bairros negros e latinos, representa não apenas uma
fuga da miserável realidade, mas
também a busca de sobrevivência
econômica e, sobretudo, de sentido para a existência.
A política repressiva desenvolvida pelos Estados Unidos, com
suas repercussões no Brasil, onde
o tema vai caindo aos poucos no
colo dos generais, não chega a se
preocupar seriamente com a inclusão dessas pessoas na sociedade, mas sim em estigmatizá-las e
puni-las.
Uma análise do comportamento da mídia, entre 86 e 92, mostra
que ela, de fato, se integrou na
guerra contra as drogas. A mídia
sempre buscou os experts que
contribuíam para criar um certo
pavor antidroga, mesmo que, para alcançar tal objetivo, tivessem
que sustentar falsas generalizações. Dizem que, numa guerra, a
primeira vítima é sempre a verdade. Isso vale também para a
guerra contra as drogas.
Em março de 86, a "Newsweek",
em matéria intitulada "Garotos e
Cocaína", apresentou, sem nenhum ceticismo, entrevista com
um expert que dizia simplesmente que o crack era a droga que viciava mais instantaneamente em
toda a história humana.
Em 1990, a "Newsweek" escrevia: "Não diga aos garotos, mas
há um pequeno e sujo segredo sobre o crack: tal como as outras
drogas, está sendo usado por muita gente que não se torna viciada
com o uso".
O interessante no livro é a constatação de que o uso do crack produziu um grande impacto negativo na população mais pobre. Os
autores mesmo antecipam a pergunta: "Se o crack fez mal a tanta
gente, por que se incomodar com
as táticas repressivas e a construção de uma atmosfera de pavor?".
Simplesmente porque essas táticas agravam os problemas, ao invés de atenuá-los.
As sugestões estão na parte final
do livro, intitulada: "Da Proibição Punitiva à Redução dos Males". A seção é aberta com uma
frase de Gramsci, embora seja
bom lembrar que os autores não
são de esquerda: "A crise consiste
no fato de que o velho já morreu e
o novo ainda não pode nascer:
nesse interregno, aparece uma
grande variedade de sintomas
mórbidos". Para Graig Reinarman e Harry G. Levine, autores
deste texto específico, a frase é válida para a política norte-americana de drogas, que, sobretudo
depois dos 80, tem se tornado ineficaz, cara e contraproducente.
Na verdade, a aterrissagem do
crack na sociedade norte-americana (não seria também o caso
brasileiro?) revela dois sintomas
mórbidos: o crescimento do desemprego e da pobreza. No princípio, o sucesso da droga se deveu
principalmente ao fato de oferecer uma saída artificial para o desespero e a pobreza nas grandes
cidades.
A resposta das autoridades,
com a prisão em massa dessa parte da população, só serviu para jogá-la ainda mais embaixo na sua
infeliz trajetória.
Os autores escolheram o termo
"proibição punitiva" porque
acham que há outras formas de
proibição. As alternativas existem, mas foram estigmatizadas
como intelectual e moralmente
escandalosas pelo antigo czar antidrogas William Bennet. Os adversários da política eram os suspeitos de sempre: intelectuais libertários, gente de esquerda. Mas
a crítica tem se ampliado para o
campo dos pensadores "respeitáveis".
Já em 86, numa reunião nacional de prefeitos, o representante
de Baltimore pedia alternativas,
inclusive a descriminalização.
Políticos negros constataram o
óbvio: a diferença de penas entre
os vendedores de cocaína e os
vendedores de crack. Uma droga
de brancos e uma droga de negros
acabava se revelando, na análise
dessas sentenças, com dois pesos e
duas medidas.
Tudo isso parece muito norte-americano. Mas poucos sabem
que mais de 70 % dos traficantes
presos no Brasil usam defensor
público, pois não têm dinheiro
para advogado. O tráfico de drogas, que supõe tanta articulação e
tanto dinheiro, não é capaz sequer de pagar advogados. A resposta é muito simples: são os pobres, e possivelmente os negros (os
dados de nosso relatório não especificam esse aspecto racial), os
que ocupam as cadeias por causa
da venda de drogas.
A política norte-americana tem
grande peso no Brasil. Mas seria
ridículo atribuir a eles a responsabilidade pelos nossos erros.
Historiadores modernos têm revelado que o atraso nem sempre é
uma imposição que vem de fora,
mas uma opção das próprias camadas dominantes.
Em vez de gastar tanto tempo
nesses debates, em que sempre há
um delegado, um pastor ou um
pai de usuário, vou mergulhar na
produção norte-americana. Vai
chegar o momento em que o debate será menos emocional, aí,
quem sabe, poderemos dar um
passo adiante, independente dos
norte-americanos, que desde os
anos 20 estão perdidos numa cruzada sem horizontes.
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