São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"PASSAGENS DA GUERRA REVOLUCIONÁRIA: CONGO"
Che fracassa como Tarzan do Congo

MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando Che Guevara disse a Gamal Abdel Nasser que pretendia liderar um grupo de guerrilheiros cubanos no Congo, o presidente egípcio se alarmou. Alertou o argentino que ele iria acabar mal se quisesse ser um "Tarzan, um homem branco entre os negros, liderando-os e protegendo-os".
Guevara não registra a advertência de Nasser no seu "Passagens da Guerra Revolucionária: Congo", o que é sintomático. "Esta é a história de um fracasso" é a primeira frase do livro. O malogro é bem detalhado, o que dá ao relato um ar cômico involuntário. Mas o autor jamais admite que a raiz da derrocada estava na sua prepotência política: um punhado de iluminados formaria o "foco" e revolucionaria a massa ignara.
Em abril de 1965, Guevara chegou ao Congo. Era o próprio Tarzan: estava acompanhado por 13 soldados cubanos, todos negros. Não podia, contudo, apresentar-se como o guerrilheiro de boina dos pôsteres, o líder de cavanhaque da revolução cubana.
Ele não quis dizer aos dirigentes do Exército de Libertação Nacional que estava indo ao Congo para ajudá-los porque temia não ser bem recebido.
Apresentou-se então como Tato, um médico de rosto escanhoado, o único branco que se juntara ao contingente cubano porque sabia falar francês. Queria criar um fato consumado: estava ali e não poderia ser mandado de volta para Cuba.
Sua suspeita estava correta. Ao saber que Che estava no país, Laurent Kabila, vice-presidente do Conselho Supremo da Revolução do Congo, proibiu que ele revelasse sua identidade. Proibiu também que ele visitasse as frentes de combate. Em francês, a língua do colonizador, Guevara conseguia se comunicar apenas com os chefes tribais, e não com a base camponesa ou com a soldadesca, que falavam "swahili".
Os guerrilheiros congoleses, Guevara logo constatou, eram indolentes e medrosos. A maioria debandava logo que o primeiro tiro era disparado, largando suas armas. A diversão preferida deles era se embebedar com "pombe", destilado da fermentação da mandioca e do milho. Ou então ir ao bordel da cidadezinha mais próxima. O principal problema de saúde da tropa não eram ferimentos em combate, e sim doenças venéreas.
Os nativos ligavam mais para a "dawa" do que para o treinamento militar. A "dawa" era a mágica que evitava que seus corpos fossem perfurados por balas. Quando ela não funcionava, botavam a culpa no feiticeiro que a preparou.
Para se manterem, os guerrilheiros congoleses assaltavam e saqueavam camponeses que estavam libertando do jugo imperialista. "A característica fundamental do Exército Popular de Libertação era a de ser um Exército parasitário", escreve Che Guevara. "Não trabalhava, não treinava, não lutava e exigia da população abastecimento e trabalho, às vezes com extrema dureza."
Ninguém se entendia. Os soldados africanos se recusavam a carregar peso. "Não sou cubano", diziam eles. Os cubanos os tratavam com desprezo. Os líderes do Exército Popular eram malvistos pelas suas tropas, pois pouco apareciam nos acampamentos, preferindo ficar nos bordéis ou na vizinha Tanzânia. Os dirigentes da guerrilha não gostavam de Guevara, que lhes fazia cobranças. Os guerrilheiros congoleses, divididos em etnias e tribos, se hostilizavam permanentemente, apesar de em teoria estarem na mesma trincheira.
Os soldados cubanos, por sua vez, começaram a se insurgir contra Che. Não entendiam por que deveriam lutar numa guerra em que seus camaradas africanos só tinham uma forma de combater: fugindo. Também se ressentiam da brutalidade de Guevara, que lhes dava ordens rígidas e logo se retirava para sua cabana, onde lia, escrevia e padecia de ataques de asma.
O Exército de Libertação Popular era financiado e equipado pela União Soviética, China e Bulgária, além de Cuba, que enviou mais de cem soldados para o Congo. Estava mais bem armado que o Exército do ditador Moise Tshombe, apoiado pelos Estados Unidos, que contava também com mercenários belgas e sul-africanos.
Militarmente, não havia comparação entre as duas forças. O Exército de Libertação contava com um armamento moderno e em maior quantidade que o das forças de Tshombe. Mas o Exército convencional tinha disciplina e treinamento.
Resultado: em sete meses, Che Guevara e os cubanos foram encurralados numa margem do lago Tanganika, de onde fugiram às pressas para a Tanzânia.
Em Dar-es-Salaam, capital da Tanzânia, Guevara se refugiou na embaixada cubana. Ali escreveu "Passagens da Guerra Revolucionária: Congo". Durante 30 anos, Fidel Castro impediu que o livro fosse divulgado. Só quando apareceram cópias clandestinas, o ditador cubano tomou a iniciativa de publicá-lo oficialmente.
A censura faz sentido: mais que a derrota, o que sobressai no livro é a irresponsabilidade de Castro e Che. Ambos estavam atritados nos meses que antecederam a aventura no Congo. A industrialização de Cuba, concebida por Guevara, não dera em nada. Fidel se aproximou mais e mais da União Soviética e aceitou que Cuba voltasse a ser o que sempre foi em termos econômicos: uma ilha monocultora de cana-de-açúcar, dependente de uma grande potência.
Guevara não divergiu de Fidel. Mesmo porque não tinha uma linha política alternativa. Limitava-se a criticar a URSS de tempos em tempos. Na prática, porém, não tinha lugar na direção do Partido Comunista Cubano. Acresce que, como quando saiu do México para participar da revolução cubana, seu casamento (o segundo) acabara.
Dessa conjunção nasceu a idéia de Guevara sair de Cuba para levar a revolução militarmente a outro país. Guevara queria ir para a Argentina. Como o Partido Comunista local combatera com vigor a tentativa de implantação de um "foco" guerrilheiro no país, a alternativa foi deixada de lado.
Surgiu então o Congo. A "débâcle" africana não mudou Guevara. Ele queria ficar longe de Cuba, onde sua carta de despedida havia sido divulgada um mês antes de fugir para a Tanzânia. Foi para a Bolívia, onde não havia nem um esboço de Exército de Libertação. Lá morreu, tão isolado como estivera no Congo.
A história fez uma última ironia com Che Guevara. No derradeiro parágrafo de "Passagens da Guerra Revolucionária", ele afirma que "o único homem com condições de dirigente de massas" do Congo é Laurent Kabila. Em seguida, diz que o líder não é sério, não conta com uma ideologia que lhe guie a ação e não tem espírito de sacrifício. Guevara conclui o raciocínio afirmando ter "dúvidas muito grandes" de que Kabila "possa superar seus defeitos no meio em que atua".
Laurent Kabila chegou ao poder em 1997. Logo proibiu o funcionamento dos partidos de oposição, baniu os grupos de defesa dos direitos humanos e manipulou conflitos étnicos na fronteira do Congo com Ruanda. A sua obra, até agora, é dupla: construiu uma das ditaduras mais ferozes da África e forçou uma guerra civil que já matou 1,7 milhão de pessoas. Kabila era bem pior do que Che Guevara jamais imaginou.


Passagens da Guerra Revolucionária: Congo
Pasajes de la Guerra Revolucionaria: Congo
Regular
Autor: Che Guevara
Tradução: Ana Carla Lacerda
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (266 págs.)


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