São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHA DA SEMANA

Contra o consenso

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Assim como Michel Foucault e Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard (1924-98) faz parte de um tempo que já passou e de uma França que não existe mais.
"Peregrinações" reúne três aulas proferidas pelo filósofo francês, em 86, na Universidade de Irvine, na Califórnia, e uma homenagem póstuma ("Memorial para um Marxismo", publicado originalmente em forma de artigo na revista "L'Esprit", em 82) ao amigo Pierre Souyri, historiador marxista especializado na China.
Não é por acaso que Lyotard tenha escolhido a forma do depoimento pessoal para explicar, num livro chamado "Peregrinações", sua idéia de filosofia: procurar, no próprio ato e nos desdobramentos do pensamento, a verdade por trás do consenso e para além das teorias predeterminantes.
Ao fazer o balanço de sua trajetória de filósofo engajado, herdeiro de Kant, Marx e Freud na França do pós-guerra, esses textos revelam a integridade que orientou o autor desde os primeiros passos: uma idéia da reflexão como exercício de despojamento de tudo o que lhe foi previamente dado, em busca da verdade do instante, do presente vivo. Um pensamento que só pode ser o seu próprio percurso.
A homenagem a Souyri é emblemática. Lyotard o conheceu na Argélia, em 1950, quando davam aulas para o segundo grau. E o tomou como uma espécie de guia político. "Tive a sorte, quando o grande século do marxismo já entrava em declínio, de aprender, quando conheci Souyri, que a dialética histórica e materialista podia não ser apenas o título de uma cadeira universitária ou de uma responsabilidade em um escritório político, mas o nome de uma resolução."
Os dois participaram juntos de um célebre grupo de intelectuais radicais, anti-stalinistas e não-dogmáticos ("Socialismo ou Barbárie"), que criticava a estrutura de classes não só no capitalismo, mas também na burocracia soviética. E acabaram tomando caminhos diversos. Em 66, Lyotard se desencantou com o marxismo. Souyri persistiu na sua posição. E daí em diante não houve mais diálogo entre os dois. A desavença nunca se resolveu.
A beleza da homenagem de Lyotard ao amigo é justamente a conclusão a que leva o artigo e que reitera o princípio de todo o livro, justificando a postura de Souyri a despeito da oposição do próprio autor: a verdade nunca está no consenso, mas na desavença.
É o que Lyotard repete nas três aulas proferidas na Universidade de Irvine: "Declaramo-nos filósofos ou escritores, devemos nos confessar impostores. Não existe pensar verdadeiro que o sentido de sua indignidade não escolte. A única maneira de sair desse atoleiro, pelo menos em parte, é exibir o inelutável: pensa-se aqui e agora, em situação, e em uma única situação de pensamento por vez. De modo que o que ameaça o trabalho de pensar (ou de escrever) não é ele permanecer episódico, é ele fingir-se completo".
O pensamento a que Lyotard se refere não é predeterminado ou garantido por nenhuma lógica exterior ou absoluta. É o pensamento possível depois de Édipo já ter desempenhado o seu papel prescrito pelo oráculo. Só aí, monástico, sem prescrições, despojado de tudo o que o predeterminava, é que poderá alcançar o que procura.
Lyotard procura o próprio acontecimento, o que está em movimento, e não o assunto do acontecimento, que é dado a priori por um consenso atemporal e estático. Ele busca seus exemplos em Kant e na idéia do sublime (no esforço de conceber o inconcebível como forma de alcançar a verdade que está para além do sentimento compartilhado do belo e da natureza), mas também em Freud e nas artes, em Cézanne e em Proust.
Jean-François Lyotard faz parte de um tempo que já passou, simplesmente porque suas idéias estão em profunda e radical desavença com um novo contexto cujo fundamento (a economia substituindo a política; o mercado substituindo as artes) é a imposição de uma lógica consensual. Uma lógica tão natural quanto o destino que nos tivesse sido revelado, e imposto, por algum oráculo.


Peregrinações - Lei, Forma, Acontecimento
Peregrinations
Ótimo
Autor: Jean-François Lyotard
Tradução: Marina Appenzeller
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 17 (110 págs.)


Texto Anterior: "A Mulher Habitada": Nicaraguense une amor e revolução
Próximo Texto: Panorâmica: Dicionário ajuda a estudar teorias do pensamento
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.