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RESENHA DA SEMANA
Contra o consenso
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Assim como Michel Foucault e Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard (1924-98) faz
parte de um tempo que já passou e de uma França que não
existe mais.
"Peregrinações" reúne três aulas proferidas pelo filósofo francês, em 86, na Universidade de
Irvine, na Califórnia, e uma homenagem póstuma ("Memorial
para um Marxismo", publicado
originalmente em forma de artigo na revista "L'Esprit", em 82)
ao amigo Pierre Souyri, historiador marxista especializado na
China.
Não é por acaso que Lyotard
tenha escolhido a forma do depoimento pessoal para explicar,
num livro chamado "Peregrinações", sua idéia de filosofia: procurar, no próprio ato e nos desdobramentos do pensamento, a
verdade por trás do consenso e
para além das teorias predeterminantes.
Ao fazer o balanço de sua trajetória de filósofo engajado, herdeiro de Kant, Marx e Freud na
França do pós-guerra, esses textos revelam a integridade que
orientou o autor desde os primeiros passos: uma idéia da reflexão como exercício de despojamento de tudo o que lhe foi
previamente dado, em busca da
verdade do instante, do presente
vivo. Um pensamento que só
pode ser o seu próprio percurso.
A homenagem a Souyri é emblemática. Lyotard o conheceu
na Argélia, em 1950, quando davam aulas para o segundo grau.
E o tomou como uma espécie de
guia político. "Tive a sorte,
quando o grande século do marxismo já entrava em declínio, de
aprender, quando conheci
Souyri, que a dialética histórica e
materialista podia não ser apenas o título de uma cadeira universitária ou de uma responsabilidade em um escritório político, mas o nome de uma resolução."
Os dois participaram juntos
de um célebre grupo de intelectuais radicais, anti-stalinistas e
não-dogmáticos ("Socialismo
ou Barbárie"), que criticava a estrutura de classes não só no capitalismo, mas também na burocracia soviética. E acabaram
tomando caminhos diversos.
Em 66, Lyotard se desencantou
com o marxismo. Souyri persistiu na sua posição. E daí em
diante não houve mais diálogo
entre os dois. A desavença nunca se resolveu.
A beleza da homenagem de
Lyotard ao amigo é justamente a
conclusão a que leva o artigo e
que reitera o princípio de todo o
livro, justificando a postura de
Souyri a despeito da oposição
do próprio autor: a verdade
nunca está no consenso, mas na
desavença.
É o que Lyotard repete nas três
aulas proferidas na Universidade de Irvine: "Declaramo-nos filósofos ou escritores, devemos
nos confessar impostores. Não
existe pensar verdadeiro que o
sentido de sua indignidade não
escolte. A única maneira de sair
desse atoleiro, pelo menos em
parte, é exibir o inelutável: pensa-se aqui e agora, em situação, e
em uma única situação de pensamento por vez. De modo que
o que ameaça o trabalho de pensar (ou de escrever) não é ele
permanecer episódico, é ele fingir-se completo".
O pensamento a que Lyotard
se refere não é predeterminado
ou garantido por nenhuma lógica exterior ou absoluta. É o pensamento possível depois de Édipo já ter desempenhado o seu
papel prescrito pelo oráculo. Só
aí, monástico, sem prescrições,
despojado de tudo o que o predeterminava, é que poderá alcançar o que procura.
Lyotard procura o próprio
acontecimento, o que está em
movimento, e não o assunto do
acontecimento, que é dado a
priori por um consenso atemporal e estático. Ele busca seus
exemplos em Kant e na idéia do
sublime (no esforço de conceber
o inconcebível como forma de
alcançar a verdade que está para
além do sentimento compartilhado do belo e da natureza),
mas também em Freud e nas artes, em Cézanne e em Proust.
Jean-François Lyotard faz parte de um tempo que já passou,
simplesmente porque suas
idéias estão em profunda e radical desavença com um novo
contexto cujo fundamento (a
economia substituindo a política; o mercado substituindo as
artes) é a imposição de uma lógica consensual. Uma lógica tão
natural quanto o destino que
nos tivesse sido revelado, e imposto, por algum oráculo.
Peregrinações - Lei, Forma, Acontecimento
Peregrinations
Ótimo
Autor: Jean-François Lyotard
Tradução: Marina Appenzeller
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 17 (110 págs.)
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