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Biografia recupera peripécias de Roniquito, mito da boemia carioca
Scarlet Moon, irmã do personagem, conta a vida do criador do termo "aspone"
PEDRO IVO DUBRA
DO GUIA DA FOLHA
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Scarlet Moon não lembra o
ano exato, apenas que o fato se
deu no começo da década de 70.
Ladrões invadiram o Antonio's,
principal reduto da boemia carioca, dominaram os freqüentadores e começaram a esvaziar
os caixas. Assustados, todos ficam em silêncio, exceto um homem franzino, que interrompe
a ação diversas vezes insistindo
para que levem também uma
lista de pessoas e valores ao lado da caixa registradora.
Era a relação dos devedores
do bar, o "pendura".
Esse homem é Ronald Russel
Wallace de Chevalier, o Roniquito (1937-83), e a história é
uma das muitas que cercam um
dos personagens ao mesmo
tempo mais amados e odiados
da Ipanema dos anos 60 e 70.
A figura ganha a sua primeira
biografia -"Dr. Roni & Mr.
Quito - A Vida do Amado e Temido Boêmio de Ipanema"-,
escrita por Scarlet Moon de
Chevalier, 55, sua irmã, e que é
lançada em São Paulo na terça.
Carioca nascido em Manaus,
Roniquito de Chevalier passou
à posteridade (ou a uns poucos
fiéis que cultuam a sua memória) como um sujeito tímido,
cultivado e bem-nascido que,
animado por algumas doses, fez
fama desafiando, com inteligência aguda e frases de efeito,
talentos reconhecidos e autoridades de circunstância, desancando tudo e todos com fúria,
segundo Scarlet, "niilista" -um
niilismo, ela diz, "com sol".
Ele constituiu um dos verbetes mais saborosos da enciclopédia "Ela É Carioca", de Ruy
Castro, e vinha aparecendo,
sempre de forma incidental,
em páginas tais quais as do livro
de Tom Cardoso sobre o jornalista gaúcho Tarso de Castro.
Agora, enfim, vira protagonista.
O médico e o monstro
Optando por um andamento
cronológico, o livro de Scarlet,
que traz no nome uma referência a Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do
livro "O Médico e o Monstro",
de Robert Louis Stevenson,
apresenta Roniquito, que era
alcoólatra, no auge de sua lenda
etílica mas também flagra a sua
faceta mais sóbria, quando, por
exemplo, na qualidade de economista respeitado, dava
orientações de investimento a
um garçom do Antonio's -que,
por conta da ajuda e dos conselhos financeiros do amigo, conseguiu comprar um táxi após o
fechamento do lugar.
Um dos fundadores da Banda
de Ipanema, Roniquito teve em
sua vida postos mais sérios
-trabalhou com Carlos Lessa
na Comissão Econômica para a
América Latina (Cepal), como
chefe do Serviço Econômico e
Financeiro da Carteira de Cooperativas do BNH, como assessor de Walter Clark na Globo e
no Ministério da Fazenda. Nem
por disso deixou de carnavalizar a pompa: a ele costuma ser
atribuída a cunhagem da palavra "aspone", diminutivo de
"assessor de porra nenhuma",
vocábulo já acolhido pelo dicionário "Houaiss".
Quando havia pileques, as
anedotas provocativas desse
boca-do-inferno ipanemense
ficavam ainda mais curiosas.
Certa vez, assim teria ele interpelado o escritor Antonio Callado: "Você já leu Faulkner?
Já?". O escritor pensou que iria
livrar-se do interrogatório inoportuno dando a resposta óbvia
-"sim, claro que li". "Pois então você sabe que você é um
bosta", retrucou Roniquito.
Para ele, segundo a crônica
escrita por Ferreira Gullar, incluída no volume, a música do
amigo Tom Jobim seria uma
simples cópia da do maestro Villa-Lobos. Clarice Lispector
surgiria como uma "wannabe"
Virginia Woolf.
Não rejeitando o mito, mas
sem o edulcorar, o livro de
Scarlet ajuda a deixar ver as
possíveis contradições e sofrimentos escondidos na figura
pública de Roniquito de Chevalier. Presa por conta de um episódio que envolvia o irmão e o
consumo de cocaína, ela escreve-lhe da prisão: "Andei sabendo que você anda triste, sem
mulher, arrasado e sentindo-se
culpado por toda essa situação
que estou vivendo. [...] As penas
que eu própria busquei, estou
dando um jeito, e agindo, para
deixá-las. Quanto a você? Tem
só se lamentado e enchido a cara! Continua não confiando em
seu potencial intelectual e criativo! [...] Inteligência a serviço
da vacilação não leva a nada. E
olha, cadeia é muito triste".
Roniquito morreu seis anos
mais tarde, pouco tempo após
ter sido atropelado. Até a morte
desancou: foi enterrado com os
olhos abertos.
DR. RONI & MR. QUITO
Autora: Scarlet Moon de Chevalier
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (252 págs.)
Lançamento: terça-feira, às 19h, no
restaurante Spot (al. Min. Rocha Azevedo, 72, SP, tel. 0/xx/11/3284-6131)
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