São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2006

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Biografia recupera peripécias de Roniquito, mito da boemia carioca

Scarlet Moon, irmã do personagem, conta a vida do criador do termo "aspone"

PEDRO IVO DUBRA
DO GUIA DA FOLHA

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Scarlet Moon não lembra o ano exato, apenas que o fato se deu no começo da década de 70. Ladrões invadiram o Antonio's, principal reduto da boemia carioca, dominaram os freqüentadores e começaram a esvaziar os caixas. Assustados, todos ficam em silêncio, exceto um homem franzino, que interrompe a ação diversas vezes insistindo para que levem também uma lista de pessoas e valores ao lado da caixa registradora. Era a relação dos devedores do bar, o "pendura".
Esse homem é Ronald Russel Wallace de Chevalier, o Roniquito (1937-83), e a história é uma das muitas que cercam um dos personagens ao mesmo tempo mais amados e odiados da Ipanema dos anos 60 e 70.
A figura ganha a sua primeira biografia -"Dr. Roni & Mr. Quito - A Vida do Amado e Temido Boêmio de Ipanema"-, escrita por Scarlet Moon de Chevalier, 55, sua irmã, e que é lançada em São Paulo na terça.
Carioca nascido em Manaus, Roniquito de Chevalier passou à posteridade (ou a uns poucos fiéis que cultuam a sua memória) como um sujeito tímido, cultivado e bem-nascido que, animado por algumas doses, fez fama desafiando, com inteligência aguda e frases de efeito, talentos reconhecidos e autoridades de circunstância, desancando tudo e todos com fúria, segundo Scarlet, "niilista" -um niilismo, ela diz, "com sol".
Ele constituiu um dos verbetes mais saborosos da enciclopédia "Ela É Carioca", de Ruy Castro, e vinha aparecendo, sempre de forma incidental, em páginas tais quais as do livro de Tom Cardoso sobre o jornalista gaúcho Tarso de Castro. Agora, enfim, vira protagonista.

O médico e o monstro
Optando por um andamento cronológico, o livro de Scarlet, que traz no nome uma referência a Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do livro "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson, apresenta Roniquito, que era alcoólatra, no auge de sua lenda etílica mas também flagra a sua faceta mais sóbria, quando, por exemplo, na qualidade de economista respeitado, dava orientações de investimento a um garçom do Antonio's -que, por conta da ajuda e dos conselhos financeiros do amigo, conseguiu comprar um táxi após o fechamento do lugar.
Um dos fundadores da Banda de Ipanema, Roniquito teve em sua vida postos mais sérios -trabalhou com Carlos Lessa na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), como chefe do Serviço Econômico e Financeiro da Carteira de Cooperativas do BNH, como assessor de Walter Clark na Globo e no Ministério da Fazenda. Nem por disso deixou de carnavalizar a pompa: a ele costuma ser atribuída a cunhagem da palavra "aspone", diminutivo de "assessor de porra nenhuma", vocábulo já acolhido pelo dicionário "Houaiss".
Quando havia pileques, as anedotas provocativas desse boca-do-inferno ipanemense ficavam ainda mais curiosas. Certa vez, assim teria ele interpelado o escritor Antonio Callado: "Você já leu Faulkner? Já?". O escritor pensou que iria livrar-se do interrogatório inoportuno dando a resposta óbvia -"sim, claro que li". "Pois então você sabe que você é um bosta", retrucou Roniquito.
Para ele, segundo a crônica escrita por Ferreira Gullar, incluída no volume, a música do amigo Tom Jobim seria uma simples cópia da do maestro Villa-Lobos. Clarice Lispector surgiria como uma "wannabe" Virginia Woolf.
Não rejeitando o mito, mas sem o edulcorar, o livro de Scarlet ajuda a deixar ver as possíveis contradições e sofrimentos escondidos na figura pública de Roniquito de Chevalier. Presa por conta de um episódio que envolvia o irmão e o consumo de cocaína, ela escreve-lhe da prisão: "Andei sabendo que você anda triste, sem mulher, arrasado e sentindo-se culpado por toda essa situação que estou vivendo. [...] As penas que eu própria busquei, estou dando um jeito, e agindo, para deixá-las. Quanto a você? Tem só se lamentado e enchido a cara! Continua não confiando em seu potencial intelectual e criativo! [...] Inteligência a serviço da vacilação não leva a nada. E olha, cadeia é muito triste".
Roniquito morreu seis anos mais tarde, pouco tempo após ter sido atropelado. Até a morte desancou: foi enterrado com os olhos abertos.


DR. RONI & MR. QUITO
Autora:
Scarlet Moon de Chevalier
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (252 págs.)
Lançamento: terça-feira, às 19h, no restaurante Spot (al. Min. Rocha Azevedo, 72, SP, tel. 0/xx/11/3284-6131)


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