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"Terra do Mra" é verdadeiro e utópico
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Não digo que não é chato.
"Terra do Mar", documentário
de Mirella Martinelli e Eduardo
Caron em cartaz no Espaço Unibanco, tem algo daqueles programas ecológicos que passam
nas TVs educativas: é respeitoso, passivo, correto.
Esse filme sobre a vida de pescadores no litoral sul do país já
foi bastante criticado na imprensa. Podemos, entretanto,
lançar uma rede meio frouxa de
atenção a esse mar de imagens,
sons e falas, e, se muita água
passa sem ser notada, há coisas
do filme que se prendem, vivas,
brilhantes, contorcidas, na vista
e na memória.
Retenho algumas imagens de
sonho. Um cemitério de pobre,
só algumas cruzes plantadas no
chão, vai sendo engolido pelo
mar. No filme, a voz de um velho
nos conta que o nível do mar foi
subindo, destruiu uma vila litorânea, algumas ruínas aparecem, e vemos então as ondas
cercar as cruzes caprichadas de
ferro e de madeira mal plantadas na areia, lambendo os mortos numa segunda morte.
Quando falta peixe, os habitantes da região procuram alimento no mangue, na maré baixa. Enfiam a mão no lodo, até os
ombros, para retirar dali um caranguejo que mal reconhecemos, estuporado de sujeira. O
próprio mangue, com as raízes
das árvores como dedos procurando a terra, é uma espécie de
cadáver silencioso e grávido -o
antropofagista Raul Bopp, cujas
poesias completas acabam de
sair, parece estar presente nessa
passagem do filme.
Há outra cena admirável. Um
burrico, puxando sua carroça,
enfrenta bravamente as ondas
do mar. É o único meio de ligação entre um sujeito, que vive
na praia, e a vila ali perto. A
carroça atravessa a água, numa
impossibilidade técnica, numa
vitória da obstinação animal
sobre um mar ainda mais obstinado. Há algo de García Lorca
nesse burrico tão espanhol, e algo de Buñuel na cena. Lembro-
me de um documentário de Buñuel sobre camponeses da Andaluzia, em que de repente
-num surrealismo da realidade- um touro saía da portinhola de uma casa de aldeia.
"Terra do Mar" captura coisas
desse tipo. A estranheza, a sensação de que há "algo errado"
no cotidiano dos pescadores volta e meia cortam o filme, cuja
excessiva neutralidade talvez
não sublinhe bastante a beleza
registrada.
Com efeito, quem não gostou
de "Terra do Mar" escreveu que
o documentário é neutro demais, procura apenas reproduzir o real, sem que haja interferência artística dos autores sobre o que é visto.
Essa avaliação é acertada e
falsa ao mesmo tempo. Sem dúvida, os autores se esconderam
atrás de uma "objetividade"
completa. Não usam da voz em
"off" explicando de que lugar se
trata, de quantos habitantes são
etc. Reproduz-se apenas a voz
dos pescadores. Não há delírios
de câmera.
Mas é errado considerar que
esta atitude seja "objetiva". É
claro que há uma seleção das
imagens, dos problemas, dos temas envolvidos nesse documentário. Cito duas opções conscientes dos diretores. A primeira
é a de mostrar a vida dos pescadores em sua total miséria -as
cenas iniciais são de taperas
quase indígenas-, mas uma
miséria digna, ecológica, merecedora de preservação. Isso já é
um "parti-pris". Poderíamos facilmente mostrar pescadores
morrendo de câncer porque não
têm acesso às técnicas mais modernas de prevenção da doença.
Poderíamos mostrar as feridas
na pele, a dor física, a limitação
de horizontes, o custo material e
espiritual dessa vida tão ecológica. Teríamos então um documentário "progressista" ao estilo dos anos 50, mostrando o que
há de ruim, de desassistido e temeroso nesse mundo.
Claro que, hoje em dia, o progresso tecnológico não tem como dispor de muito prestígio. A
opção dos autores foi mostrar
uma vida "harmoniosa", ainda
que pobre, ameaçada pelas traineiras que praticam pesca predatória. Sentimos que é melhor
ter uma vida rústica à beira do
mar, mas sem patrão, do que
entrar na espiral do consumismo, do desemprego e da humilhação de ter chefes e ouvir
broncas.
Este rousseauísmo de "Terra
do Mar" só funciona porque se
oculta o vazio de uma vida que,
sendo ecológica, é quase animal
também. Esse ocultamento não
funciona de todo -pois a maioria das pessoas termina achando o filme chato, ou seja, reflexo
de existências afinal desinteressantes.
Mas há outro ocultamento
que compromete o filme. Procurando preservar ao máximo a
pureza daquele estilo de vida,
"Terra do Mar" tende a ignorar
as relações da comunidade pesqueira com o sistema social
mais amplo -com a "totalidade", diríamos. Assim, os pescadores mais velhos reclamam das
gerações mais novas, que assistem televisão e não querem saber das antigas cantorias.
Mas o filme não mostra pescadores vendo televisão: a ameaça
ao modo de vida tem de ser externa, alienígena; a tal ponto
que parece distante demais para ser verdadeira. Procurando
ser elegíaco, o filme se torna idílico; para dar mais peso à realidade local que retrata, nega a
realidade mais ampla que a
ameaça.
Tudo assim se imobiliza. A suposta "frieza" documental dos
autores do filme é um "fingir-se
de morto" que mimetiza de modo animal um desejo ecológico,
o da preservação. É uma crítica
ao progresso, que é justa, mas
aposta naquilo que o progresso
sempre é capaz de vencer, a saber, a paralisia.
Mas enquanto isso, vejo cenas
oníricas nesse documentário supostamente realista. Os sonhos
do burrico, do cemitério, do caranguejo, apontam para coisas
além do real. Falta chamar a
atenção do possível espectador
para uma outra coisa: as falas
dos pescadores. O sotaque dele é
estranhíssimo, estrangeiro. Há
um longo discurso de uma mulher sobre os perigos do mar.
Aquilo é pura poesia. A voz vai e
vem, sobe e desce, com ameaças
e calma, agudos e graves, roucos
e claros; é o mar falando, e termina no sopro longo e trêmulo,
numa advertência de bruxa, dizendo: "O vento... o vento mata". Há uma forma de descrever
as coisas pela qual o mar, a tainha, o vento, a água, tudo "pensa", tudo está imbuído de intenções, tudo planeja seu destino,
como o homem.
Só ouvir uma dessas falas justifica ir ver "Terra do Mar". Mas
é como se o filme soubesse da irrealidade de uma natureza tão
intencional assim. Inconformados, os autores cercaram-na de
um realismo em quarentena, fazendo do documentário uma reserva ecológica contra a realidade mais ampla.
A natureza se torna fixa, portanto -enquanto os narradores do filme a vêem como astuciosa inimiga. Os autores abdicam de suas próprias intenções
-enquanto a intencionalidade
dos antiecologistas exige ser denunciada. Resta, entretanto, o
momento em que toda intenção
do filme se dissolve: numa cena
estranha, numa cena de sonho,
numa fala doida, num nó de
sentido, num emaranhado de
rede, num brilho de escamas e
de água, num lodo de mangue...
nesses momentos "Terra do
Mar" é verdadeiro e utópico ao
mesmo tempo.
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