São Paulo, quarta, 9 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Terra do Mra" é verdadeiro e utópico

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Não digo que não é chato. "Terra do Mar", documentário de Mirella Martinelli e Eduardo Caron em cartaz no Espaço Unibanco, tem algo daqueles programas ecológicos que passam nas TVs educativas: é respeitoso, passivo, correto.
Esse filme sobre a vida de pescadores no litoral sul do país já foi bastante criticado na imprensa. Podemos, entretanto, lançar uma rede meio frouxa de atenção a esse mar de imagens, sons e falas, e, se muita água passa sem ser notada, há coisas do filme que se prendem, vivas, brilhantes, contorcidas, na vista e na memória.
Retenho algumas imagens de sonho. Um cemitério de pobre, só algumas cruzes plantadas no chão, vai sendo engolido pelo mar. No filme, a voz de um velho nos conta que o nível do mar foi subindo, destruiu uma vila litorânea, algumas ruínas aparecem, e vemos então as ondas cercar as cruzes caprichadas de ferro e de madeira mal plantadas na areia, lambendo os mortos numa segunda morte.
Quando falta peixe, os habitantes da região procuram alimento no mangue, na maré baixa. Enfiam a mão no lodo, até os ombros, para retirar dali um caranguejo que mal reconhecemos, estuporado de sujeira. O próprio mangue, com as raízes das árvores como dedos procurando a terra, é uma espécie de cadáver silencioso e grávido -o antropofagista Raul Bopp, cujas poesias completas acabam de sair, parece estar presente nessa passagem do filme.
Há outra cena admirável. Um burrico, puxando sua carroça, enfrenta bravamente as ondas do mar. É o único meio de ligação entre um sujeito, que vive na praia, e a vila ali perto. A carroça atravessa a água, numa impossibilidade técnica, numa vitória da obstinação animal sobre um mar ainda mais obstinado. Há algo de García Lorca nesse burrico tão espanhol, e algo de Buñuel na cena. Lembro- me de um documentário de Buñuel sobre camponeses da Andaluzia, em que de repente -num surrealismo da realidade- um touro saía da portinhola de uma casa de aldeia.
"Terra do Mar" captura coisas desse tipo. A estranheza, a sensação de que há "algo errado" no cotidiano dos pescadores volta e meia cortam o filme, cuja excessiva neutralidade talvez não sublinhe bastante a beleza registrada.
Com efeito, quem não gostou de "Terra do Mar" escreveu que o documentário é neutro demais, procura apenas reproduzir o real, sem que haja interferência artística dos autores sobre o que é visto.
Essa avaliação é acertada e falsa ao mesmo tempo. Sem dúvida, os autores se esconderam atrás de uma "objetividade" completa. Não usam da voz em "off" explicando de que lugar se trata, de quantos habitantes são etc. Reproduz-se apenas a voz dos pescadores. Não há delírios de câmera.
Mas é errado considerar que esta atitude seja "objetiva". É claro que há uma seleção das imagens, dos problemas, dos temas envolvidos nesse documentário. Cito duas opções conscientes dos diretores. A primeira é a de mostrar a vida dos pescadores em sua total miséria -as cenas iniciais são de taperas quase indígenas-, mas uma miséria digna, ecológica, merecedora de preservação. Isso já é um "parti-pris". Poderíamos facilmente mostrar pescadores morrendo de câncer porque não têm acesso às técnicas mais modernas de prevenção da doença. Poderíamos mostrar as feridas na pele, a dor física, a limitação de horizontes, o custo material e espiritual dessa vida tão ecológica. Teríamos então um documentário "progressista" ao estilo dos anos 50, mostrando o que há de ruim, de desassistido e temeroso nesse mundo.
Claro que, hoje em dia, o progresso tecnológico não tem como dispor de muito prestígio. A opção dos autores foi mostrar uma vida "harmoniosa", ainda que pobre, ameaçada pelas traineiras que praticam pesca predatória. Sentimos que é melhor ter uma vida rústica à beira do mar, mas sem patrão, do que entrar na espiral do consumismo, do desemprego e da humilhação de ter chefes e ouvir broncas.
Este rousseauísmo de "Terra do Mar" só funciona porque se oculta o vazio de uma vida que, sendo ecológica, é quase animal também. Esse ocultamento não funciona de todo -pois a maioria das pessoas termina achando o filme chato, ou seja, reflexo de existências afinal desinteressantes.
Mas há outro ocultamento que compromete o filme. Procurando preservar ao máximo a pureza daquele estilo de vida, "Terra do Mar" tende a ignorar as relações da comunidade pesqueira com o sistema social mais amplo -com a "totalidade", diríamos. Assim, os pescadores mais velhos reclamam das gerações mais novas, que assistem televisão e não querem saber das antigas cantorias.
Mas o filme não mostra pescadores vendo televisão: a ameaça ao modo de vida tem de ser externa, alienígena; a tal ponto que parece distante demais para ser verdadeira. Procurando ser elegíaco, o filme se torna idílico; para dar mais peso à realidade local que retrata, nega a realidade mais ampla que a ameaça.
Tudo assim se imobiliza. A suposta "frieza" documental dos autores do filme é um "fingir-se de morto" que mimetiza de modo animal um desejo ecológico, o da preservação. É uma crítica ao progresso, que é justa, mas aposta naquilo que o progresso sempre é capaz de vencer, a saber, a paralisia.
Mas enquanto isso, vejo cenas oníricas nesse documentário supostamente realista. Os sonhos do burrico, do cemitério, do caranguejo, apontam para coisas além do real. Falta chamar a atenção do possível espectador para uma outra coisa: as falas dos pescadores. O sotaque dele é estranhíssimo, estrangeiro. Há um longo discurso de uma mulher sobre os perigos do mar. Aquilo é pura poesia. A voz vai e vem, sobe e desce, com ameaças e calma, agudos e graves, roucos e claros; é o mar falando, e termina no sopro longo e trêmulo, numa advertência de bruxa, dizendo: "O vento... o vento mata". Há uma forma de descrever as coisas pela qual o mar, a tainha, o vento, a água, tudo "pensa", tudo está imbuído de intenções, tudo planeja seu destino, como o homem.
Só ouvir uma dessas falas justifica ir ver "Terra do Mar". Mas é como se o filme soubesse da irrealidade de uma natureza tão intencional assim. Inconformados, os autores cercaram-na de um realismo em quarentena, fazendo do documentário uma reserva ecológica contra a realidade mais ampla.
A natureza se torna fixa, portanto -enquanto os narradores do filme a vêem como astuciosa inimiga. Os autores abdicam de suas próprias intenções -enquanto a intencionalidade dos antiecologistas exige ser denunciada. Resta, entretanto, o momento em que toda intenção do filme se dissolve: numa cena estranha, numa cena de sonho, numa fala doida, num nó de sentido, num emaranhado de rede, num brilho de escamas e de água, num lodo de mangue... nesses momentos "Terra do Mar" é verdadeiro e utópico ao mesmo tempo.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.