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CONTARDO CALLIGARIS
Os benefícios de acabar com castas sociais
Na semana retrasada, defendi
aqui uma proposta para mudar
(um pouco) o sistema injusto pelo
qual o acesso às universidades públicas se torna privilégio de quem
conseguiu pagar um secundário
particular.
Desde então, tomei conhecimento de um projeto de lei senatorial que agora está à espera de
aprovação da Câmara. O projeto
reserva 50% das vagas das universidades públicas para alunos
que cursaram integralmente escolas públicas.
No último domingo, o editorial
da Folhase situava contra este
projeto. De fato, mesmo com as
melhores intenções, o projeto senatorial prepara uma pequena
catástrofe, pois ele institui um sistema de cotas (50% de vagas). A
experiência americana neste sentido poderia nos ser útil, pois ela
está na época do balanço conclusivo.
Sua primeira lição é que a instituição de um sistema de cotas se
revelou insuportável, contrária a
sentimentos básicos de justiça em
uma sociedade moderna. Não é
possível compensar injustiças e
abusos se isso parece se tornar
fonte de novas discriminações e
injustiças.
A ação afirmativa nos EUA
queria estabelecer, no trabalho e
nas escolas superiores, porcentagens de presença negra comparáveis com a porcentagem de negros
na população americana -o que
é mais que legítimo. Mas a idéia
de que um avanço social não fosse
definido pelo mérito tornou a medida gradativamente intolerável.
No caso do projeto senatorial
brasileiro, a coisa é pior. A injustiça não corta o país entre riquíssimos e miseráveis, sem zonas de
sombra. Milhares de famílias decidem, a cada ano, se pagam o seguro-saúde ou as mensalidades
da escola particular para as
crianças.
A escolha de uma escola particular não é sinal de privilégio. Como não surgiria, então, a objeção
de que a lei teria efeitos injustos,
discriminando alunos de escolas
particulares que, ao contrário,
deveriam ser ajudados?
É possível promover ações afirmativas sem instaurar sistemas
de cotas iníquos. Em vez de compensar as dificuldades sociais por
privilégios (vagas reservadas), é
melhor insistir sobre critérios para avaliar corretamente o mérito
dos alunos.
Por exemplo, os que conseguissem se destacar como os melhores
alunos do secundário público teriam direito a uma consideração
especial pois, os resultados sendo
equivalentes, é bem provável que
seus méritos fossem superiores
aos de alunos favorecidos socialmente. Minha proposta ia nessa
direção.
De qualquer forma, os programas de ação afirmativa são paliativos e certamente não alteram a
distribuição das cartas na sociedade brasileira.
Mas eles podem ter uma função
social concreta e importante. São
declarações de intenção pelas
quais o Estado (e com ele a comunidade) explicitamente recusa e
critica as formas mais dolorosas
da diferença social. Ou seja, afirma-se: as iniquidades serão corrigidas. Afirmação essa que é essencial para que ninguém se identifique como excluído da comunidade.
Alguns leitores manifestaram
preocupação com a idéia de que a
proposta permitiria falcatruas.
Jovens de classes abastadas se
matriculariam no secundário público e conseguiriam assim uma
espécie de vestibular para pobres
- fácil para quem teria uma cultura de rico.
É por isso, aliás, que o projeto
do Senado propõe que só se beneficie das vagas reservadas quem
passe no ensino público sua escolaridade inteira.
Ora, as eventuais falcatruas (ou
seja, a escolha do ensino público
por famílias de classe média), longe de ser um problema, poderiam
ser o começo de uma verdadeira
solução.
Vejam só: em qualquer sociedade moderna, o pacto social mínimo é comprometido quando as
classes se encontram divididas,
como se fossem castas. O contrato
democrático implica a idéia de
que a mobilidade social seja, em
princípio, possível. E, para que a
sociedade acredite neste contrato,
é preciso que as classes não sejam
segregadas em mundos distintos,
casas-grandes e senzalas. É preciso que, em alguma medida, elas
coabitem.
Uma série de pesquisas americanas dos anos 70 e 80 mostrou,
por exemplo, que um gueto precipita no caos (ou seja, apresenta
aumento vertiginoso de gravidez
de menores, interrupção de escolaridade etc.) desde que o número
de habitantes de classe média se
torna insignificante. Se nele continuam morando, por exemplo,
7% de classe média, o bairro segue dentro do contrato social, não
se marginaliza.
A pobreza ou mesmo a miséria
não são excludentes se aparecem
circundadas por destinos melhores dentro do mesmo espaço social. Sem isso, seus habitantes se
sentirão e tornarão excluídos -
não mais obrigados pelo pacto comum.
Aposto que a mesma coisa deve
acontecer com a escola. Um primário e secundário públicos frequentados só por indigentes não
têm como produzir motivação.
Se, mesmo que seja por malandragem, a classe média voltasse a
frequentar o ensino público, os estudantes mais pobres seriam favorecidos por esta mudança. Pois
voltariam a acreditar que ricos e
pobres pertencem um pouco ao
mesmo povo. Quem sabe se autorizassem, assim, a esperar e sonhar. Portanto, a agir.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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