São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

Ivan Lessa escreve bem para burro e é bom que dói

especial para a Folha

Inacreditável. Um dos maiores cronistas e pensadores brasileiros não faz questão de publicar livros. Prefere suas crônicas lidas e transmitidas via ondas curtas, pela BBC, de Londres. E, mais curioso, não tem idéia de quem as escuta.
Seu primeiro livro, "Garotos da Fuzarca" (1986), existe graças ao esforço do escritor Diogo Mainardi, que recolheu, compilou e editou contos perdidos em publicações extintas (tablóides e revistas). Seu segundo livro, "Ivan Vê o Mundo", existe graças a Helena Carone, que selecionou 42 crônicas escritas entre 1987 e 1999.
Mas é o próprio autor quem dá a dica de seu desinteresse, em uma de suas crônicas: "... nunca descobri nada de muito importante num livro. Descobri muito mais sentado no banco da praça discutindo com a namorada do que em "A Montanha Mágica" do Thomas Mann." Ao final, decreta: "Eu, como você e você e você, estava, estou, estamos vivos. Um romance é a coisa mais morta do mundo." Tem toda a razão.
Não há escritores nas listas de convidados vips às festas de São Paulo. Há pagodeiros, envolvidos em escândalos, esportistas e beldades despidas recentemente. Há uma inversão dos valores culturais do país. O importante não importa mais. Talvez seja reflexo de uma democratização da exposição do pensamento. O pensamento de um povo sem cultura.
E como Lessa não está no foco das atenções, a liberdade se materializa, a independência se manifesta, e nascem frases como "quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão", ou "a crônica é a nossa bustificação...".
Lessa revela delicadeza, quando lembra que quartos de bebês têm cheiro de canela, e um cinismo que dói, ao reclamar que o brasileiro assobia demais. "Acho que a humanidade não tem nada que assobiar. Se quer tocar um instrumento, sai na rua com um trombone de vara. O assobio é uma deformação profissional."
Lessa faz muito mais que ver o mundo. Debate o mundo, a literatura e reinventa a crônica. Descreve gestos invisíveis de personagens que passariam desapercebidos por um não-escritor. Escreve bem para burro e é bom que dói.



Avaliação:     

Livro: Ivan Vê o Mundo - Crônicas de Londres
Autor: Ivan Lessa
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 17 (174 págs.)


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