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NELSON ASCHER
O "tao" do menor esforço
Livro que se tornou sagrado na antiga China tem 81 capítulos, cada qual um breve poema
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A POESIA aparentemente não
passa de um caso especial da
prosa. Como esta, aquela consiste em alinhavar palavras obedecendo a tais ou quais regras, só que,
no seu caso, existiriam algumas suplementares. Descontadas estas,
não haveria nada próprio à poesia
que a prosa não pudesse fazer.
Caso aprofundemos nosso foco,
porém, perceberemos que o problema colocou-se em geral de modo
distinto. Tradicionalmente, a poesia
é antes o contrário da prosa. Nesta, o
conteúdo é mais importante que a
forma, enquanto naquela o que vale
é o oposto. Os recursos naturais da
poesia, a começar pela repetição de
sons, são vícios na boa prosa. Se o
prosador luta contra sua língua até
domá-la, o poeta a deixa ditar-lhe inclusive o que dirá.
Essa distinção é importante para
quem procure compreender não a
"mensagem", mas a natureza do
"Tao Te Tching".
Remontando ao século 4º a.C., o livro que se tornou sagrado na antiga
China consiste em 81 capítulos, cada
qual um breve poema mais ou menos independente. Nunca se chegará, em outros idiomas, a um acordo
acerca do significado nem de "tao"
nem de "te", de modo que muitas
versões preferem nem traduzir o
primeiro termo. Durante sua trajetória, a obra foi dividida arbitrariamente em duas metades, o "Livro do
Tao" e o "Livro do Te". Achados arqueológicos recentes subverteram
tudo isso.
Quando alguém que não sabe chinês, como eu, lê o livro, o que salta
aos olhos é que, nas centenas de traduções publicadas no Ocidente, nada, a partir do primeiro verso, parece coincidir. Cada linha de cada versão, mesmo as mais respeitáveis, diz,
se comparada com as das demais, algo diferente e, não raro, até o oposto.
Como é possível? Que tipo de livro
sagrado é esse? Será ele obscuro demais ou seus intérpretes é que são
incompetentes?
Nem um, nem outro. Acontece
que a maioria busca extrair da obra
afirmações prosaicas, enquanto o
que ela oferece é uma sucessão, acumulada durante séculos e, em parte,
por acaso, de trocadilhos, jogos de
palavras e conceitos, "doubles entendres", respostas ambíguas como
as da Pitonisa. Sendo o chinês uma
língua analítica ou isolante cujas palavras existem, por assim dizer, em
estado puro, sem marcação morfológica, quase tudo nele é determinado pelo contexto e pela ordem. Pequenas alterações nesta acarretam
mudanças sísmicas de sentido.
Malgrado tamanho vaivém de significados oscilantes, um conselho
perpassa o livro inteiro, a saber, o de
sempre poupar energia, algo que faz
sentido tanto numa sociedade agrária quanto, em tempos de petróleo
caro, na nossa. E, se os ensinamentos do "Tao Te Tching" se aplicam às
mais diversas esferas, tudo indica
que, ao tomar forma, ele servia de
breviário político com o qual eruditos itinerantes buscavam emprego
de conselheiros nas diversas cortes
em contínuo atrito nas quais se subdividia uma China ainda não unificada. Em condições tais, quando cabeça alguma se colava firmemente
ao pescoço, a ambigüidade do livrinho podia às vezes salvar o mensageiro da ira de usuários malogrados.
Traduzir, num português plausível, esse clássico é minha resolução
(precoce) de ano novo. Em vez de
desdobrá-lo, oferecendo em seguida
uma interpretação do que julguei
(através das traduções acessíveis,
análises, exegeses, versões interlineares etc.) ter visto ali, minha intenção é a de oferecer ao leitor as
ambigüidades, o leque aberto das incertezas, não tornando mais preciso
o que é de propósito impreciso, nem
atribuindo um sentido fixo ao que
pode ter inúmeros e vagos. O melhor
modo de alcançar tal resultado é seguir a lição central, isto é, curvar-se à
lei do menor esforço, só que não trabalhando menos, mas buscando
contrariar o menos possível a natureza de nossa língua. Minha tradução vai se chamar "Roteiro da Retidão" e o que segue são seu primeiro e
último capítulos.
1) A rota dita nunca/ é a rota que
condiz/ o nome que a nomeia/ tampouco é o renomado/ se anônima é
raiz/ de terra e céu/ nomeando-se é
matriz/ dos seres mil/ quem nada
anseia/ discerne o cerne/ ansiosos
nada/ vêem fora o externo/ unidos
que eram/ se nomes os desunem/
reúne-os serem/ obscuros e entre/
obscuridades/ tais é que se acha/ o
umbral de todo/discernimento.
81) Verdades desagradam/ inverdades agradam/ o certo é inconvincente/ o convincente é incerto/ o
culto não ostenta/ o ostentador é inculto/ quem sabe não o oculta/
quanto mais doe mais tem/ pois dividindo soma/ a rota celestial/ traz
dita não desdita/ quem sabe atém-se à rota/ atuando sem atrito.
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