São Paulo, sábado, 09 de outubro de 2010

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Assistente revela criação de Kurosawa

Teruyo Nogami conta que diretor arremessou prato de mingau contra ela, durante as filmagens de "Dersu Uzala"

"Pensando naquilo [a agressão], percebo que Kurosawa estava à beira do abismo", afirma hoje a produtora, aos 83 anos

DA REPORTAGEM LOCAL

Em sua autobiografia, Akira Kurosawa fez um agradecimento a Teruyo Nogami no prefácio. E também um mea-culpa. "Teruyo Nogami, meu braço direito (...), por seu esforço, do começo ao fim, a pessoa que faço sofrer."
Em "À Espera do Tempo", Nogami relembra a fúria que sentira quando, durante as filmagens de "Dersu Uzala" (1975), na Rússia, Kurosawa arremessou um prato de mingau em sua direção.
Hoje, aos 83 anos, ela revê a própria mágoa. "Pensando naquilo, percebo que Kuroswa estava à beira do abismo, cansado de tanta ansiedade e solidão. Arrependo-me de não ter me colocado em seu lugar."
Nogami, que virá a São Paulo para a abertura da exposição "Kurosawa - Criando Imagens para Cinema" e para o lançamento do livro, deu entrevista à Folha, com a ajuda de um tradutor. Mandou as respostas escritas à mão, em japonês.
"Não tenho tempo para aprender a mexer com os computadores", justifica ela. "As facilidades que vemos hoje eram inconcebíveis anos atrás. As pessoas vão mudar, e o cinema também."

Sempre alerta
Nagomi aproximou-se do ofício trabalhando com Mansaku Itami (1900-1946). Conheceu Kurosawa em "Rashomon" (1951), trabalhando como continuísta. Era responsável por evitar, por exemplo, que um ator aparecesse com o cabelo penteado de diferentes maneiras numa mesma cena e por anotar começo e fim de cada tomada.
Em "Ikiru" (1952), e pelas três décadas seguintes, tornou-se assistente de produção. A partir, de "Ran" (1985), virou a principal produtora de Kurosawa.
Como escreve o crítico Donald Richie, no prefácio do livro, seu trabalho era, às vezes, invisível, "mas suas sugestões sempre estavam presentes incorporadas".
Richie diz que, "dentro e fora do set, a única pessoa que Kurosawa não criticou e com quem nunca se encolerizou foi Nogami".

Olhar discreto
Nogami, provavelmente, sempre agiu com a mesma discrição e cuidado que utiliza para escrever. Mais do que ninguém, ela parecia compreender o diretor.
A autora conta, por exemplo, que antes do início das filmagens de "Rashomon", três assistentes, confusos diante do roteiro, procuraram o diretor em busca de explicações. Kurosawa limitou-se a dizer quer "o roteiro era ininteligível porque tratava do espírito ininteligível do ser humano".
Nagomi descreve, por exemplo, detalhes dos espelhos utilizados para iluminar as árvores da floresta de "Rashomon". Ela recorda também o vento que soprou na hora certa ou o sol que o diretor estava sempre a buscar, na posição ideal.
O cinema que Nogami viveu não tinha a tecnologia como muleta. Naqueles tempos, um erro na gravação da trilha sonora significa recomeçar o trabalho do zero.
Para Kurosawa, nada disso importava. "Ele consultava os câmeras, espiava pelo visor em todas as cenas, decidia a composição. Até a escolha das lentes ficava por sua conta", revela a auxiliar.
Kurosawa memorizava tudo que filmava. Nesse sentido, não precisava de continuísta. Por outro lado, tinha também a mania de filmar a mesma cena em lugares diferentes. E aí a chance de haver falhas de figurino e posição de câmera eram imensas.
Durante muitos anos, Nogami evitou erros. Hoje, evita que a memória do cinema perca. "Sou uma das testemunhas sobreviventes", diz.
(ANA PAULA SOUSA)


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